domingo, 1 de fevereiro de 2015

O Valor da Palavra. Entre quem tem o poder e quem sofre as consequências.


Apesar do que já foi escrito sobre esta matéria:

Não foram ainda esgotadas todas as vertentes de análise do tema e, por isso, escrevo mais este artigo a que resolvi dar o título de “O VALOR DA PALAVRA. ENTRE QUEM TEM O PODER E QUEM SOFRE AS CONSEQUÊNCIAS”.

E porquê?

Porque, infelizmente, mesmo perante provas inquestionáveis que demonstram o inverso (as quais não terão sido tidas em consideração, talvez porque isso comprometeria a conclusão pretendida?), como seja o relato ipsis verbis das intervenções no parlamento do proponente da lei e dos deputados da maioria que aprovaram a legislação, ainda assim, os meritíssimos juízes do Tribunal Central Administrativo Sul, no seu Acórdão de 15 de janeiro de 2015, arrogaram-se no supremo direito de reinterpretar aquela que, na sua douta opinião, deveria ser a “intenção do legislador”:
«Concluímos do exposto que não foi intenção do legislador, durante este período – 120 dias -, dotar as assembleias distritais da plena capacidade jurídica de administrarem os seus bens, ao invés do que vinham fazendo até à entrada em vigor da presente lei.
A conclusão que a Recorrente pretende extrair do teor vertido no artigo 9.º da Lei n.º 36/2014, isto é, de que a Recorrente entre as demais assembleias distritais até à conclusão do processo de transferência da universalidade de que é composta, poderia exigir o cumprimento junto dos municípios de pagamentos em atraso, encontra na sentença em crise a solução prevista pelo legislador a qual não passa necessariamente por conferir personalidade judiciária à Recorrente.
Com efeito, nos termos do citado artigo 9.º, os municípios que se encontrem em incumprimento do dever de contribuir para os encargos das assembleias distritais constituirão uma receita que será integrada na universalidade a transferir, sendo a entidade recetora a quem esta for afecta e não já a Recorrente que terá personalidade judiciária para cobrir os eventuais pagamentos em atraso.»

Todavia, segundo se pode ler no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 68, de 3 de abril de 2014, páginas 3 a 16 (que contém o relato da sessão de dia 2 de abril aquando da apresentação da proposta de lei do Governo sobre as Assembleias Distritais):
… «Relativamente à questão da garantia dos salários, que me parece uma questão importante, Sr. Deputado, talvez das mais importantes que aqui discutimos, ao dizermos nesta proposta que se transfere uma universalidade com todas as posições ativas e passivas, isto significa também que as dívidas perante os trabalhadores, caso elas existam no momento da transição, mantêm-se.
Mas, Sr. Deputado, o que eu considero ser mesmo o caminho adequado é que as assembleias distritais, com os meios de receitas normais que estão previstos na lei, possam pagar entretanto os salários em atraso aos seus trabalhadores. Isso é possível fazer, está previsto nas leis, mas se o Sr. Deputado o considera útil, julgo que isso pode ser perfeitamente esclarecido nesta proposta de lei.» …
… «A proposta é clara mas, presentemente, fica a subsistir apenas um problema, um problema que nos é igualmente caro e que, embora acautelado na lei atual e nos regimentos internos, não deixa de causar danos. Referimo-nos à regularização das dívidas das autarquias às assembleias distritais, dívidas estas geradoras de situações de desequilíbrio económico e financeiro que as impede de cumprir com as suas responsabilidades, como seja o pagamento dos salários em atraso. …
Nesta circunstância, comprometemo-nos desde já e sem desvirtuar a transparência democrática deste diploma, a procurar, em sede de especialidade, introduzir alterações que visem criar mecanismos de regularização das dívidas dos municípios, para que as assembleias distritais procedam ao pagamento dos salários em atraso. Estamos convictos que todos se irão empenhar na procura desta solução, que se espera justa e amplamente participada.» …
… «Debatemos hoje o futuro das assembleias distritais e o Governo foi confrontado com quatro preocupações, designadamente uma questão constitucional, que é incontornável, o problema dos trabalhadores, muitos deles já com ordenados em atraso, uma solução para o património e os serviços prestados pelas assembleias distritais e, por último, o destino e o futuro a dar às assembleias distritais. …
Esta proposta de lei salvaguarda, e bem, os atuais funcionários das assembleias distritais. E é justo reconhecer aqui o trabalho que os funcionários das assembleias distritais fizeram, na salvaguarda e valorização do património histórico e cultural dos seus distritos. Agora, também há que destacar negativamente a forma como alguns municípios abandonaram essas mesmas assembleias distritais. E dou o exemplo de Lisboa que, com total desrespeito pelos trabalhadores das assembleias distritais, saiu e deixou de pagar a sua contribuição, o que conduziu a uma rutura financeira, deixando trabalhadores sem salários e com ordenados em atraso. …
O Governo, depois de ouvir as diferentes entidades, num espírito aberto, num espírito de diálogo, num espírito absolutamente construtivo, apresenta uma solução que respeita a Constituição, que cria um regime para as novas assembleias distritais e que assegura a regulação da transição dos respetivos serviços, trabalhadores e património.»

Ou seja, de modo algum se infere que a pretensão do legislador fosse a de, com a entrada em vigor da Lei n.º 36/2014 a 1 de julho, antes de concluído o processo de transferência das Universalidades para as novas Entidades Recetoras, o novo regime jurídico começasse a produzir efeitos de imediato, proibindo-se a partir dessa data as Assembleias Distritais de arrecadar receitas, efetuar despesas e manter trabalhadores, impedindo-as de regularizar as situações de salários em atraso que já naquela data existiam.

Aliás, foi por considerarem que a situação dos salários em atraso era grave e deveria ser resolvida rapidamente, e não estar a ser protelada por tempo indeterminado até que as Universalidades das Assembleias Distritais fossem integradas nas novas Entidades Recetoras, que a Proposta de Lei n.º 212/XII entregue pelo Governo foi depois alterada em sede de discussão na especialidade dando origem ao Decreto da Assembleia da República n.º 228/XII que, depois de promulgado e publicado no Diário da República, viria a ser a Lei n.º 36/2014, de 26 de junho.

Dando cumprimento àquilo que o próprio Governo e o Grupo Parlamentar do PSD haviam prometido no plenário de dia 2 de abril e cujas intervenções voltamos a transcrever para dar ênfase àquela que fora, de facto, a “intenção do legislador” mas que os meritíssimos juízes do Tribunal Central Administrativo Sul que subscreveram o Acórdão de dia 15-01-2015 resolveram desconsiderar ao conferir-lhe sentido inverso ao pretendido:
Secretário de Estado da Administração Local: «… Mas, Sr. Deputado, o que eu considero ser mesmo o caminho adequado é que as assembleias distritais, com os meios de receitas normais que estão previstos na lei, possam pagar entretanto os salários em atraso aos seus trabalhadores. Isso é possível fazer, está previsto nas leis, mas se o Sr. Deputado o considera útil, julgo que isso pode ser perfeitamente esclarecido nesta proposta de lei.» …
Deputada Emília Santos, do PSD: «… Nesta circunstância, comprometemo-nos desde já e sem desvirtuar a transparência democrática deste diploma, a procurar, em sede de especialidade, introduzir alterações que visem criar mecanismos de regularização das dívidas dos municípios, para que as assembleias distritais procedam ao pagamento dos salários em atraso. Estamos convictos que todos se irão empenhar na procura desta solução, que se espera justa e amplamente participada.» …

E daí a nossa pergunta: PORQUÊ?

Insistir numa interpretação errada da “intenção do legislador” (como acima se demonstra) que favorece quem de forma deliberada e dolosamente não cumpre a lei (Câmara Municipal de Lisboa), e apesar de conscientes que essa atitude apenas irá prejudicar ainda mais os trabalhadores, é um ato gravíssimo num Estado de Direito Democrático, sobretudo quando praticado por um coletivo de juízes de um Tribunal superior a quem, supostamente, caberia aplicar a Justiça.

1 comentário:

Fernando Castro disse...

Só que esses senhores "miseráveis cidadãos como qualquer um de nós" (no dizer de um advogado amigo) não têm nem nunca tiveram o seu vencimento em atraso, nem nunca ficaram sem ele, para terem a capacidade de avaliar o que isso significa.

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