Breve reflexão sobre o papel da
jurisprudência em prol de uma maior justiça administrativa
Começo este texto por uma espécie
de “declaração metodológica” de princípios.
Não sou jurista mas lido, amiúde,
com legislação e tenho por hábito consultar acórdãos dos Tribunais em assuntos
de direito regional e local que versem, sobretudo, matérias na esfera de
competências das autarquias porque, confesso, gosto de apreciar o confronto
argumentativo de ambas as partes e assim aprender com casos práticos e não
ficar reduzida à teorização doutrinal de interpretações egocêntricas das normas
legais por mais bem elaborados que os pareceres em causa possam ser.
Deixo um exemplo concreto da
importância desta análise jurídica comparativa e de como ela nos permite
encontrar as melhores soluções e ultrapassar os constrangimentos que o complexo
quadro legal da nossa Administração Pública por vezes nos trás:
No âmbito das funções que
desempenho na área da gestão autárquica há mais de duas décadas consecutivas,
tive de organizar alguns processos a submeter à aprovação do Tribunal de
Contas. Na sua preparação socorri-me do estudo prévio de casos semelhantes
(através da leitura dos respetivos acórdãos) e cujo visto fora recusado para
não cometer as mesmas falhas e aprender como satisfazer, na íntegra, todos os
requisitos legalmente pretendidos e redigir uma formulação consistente que
permitisse a obtenção da indispensável declaração de conformidade mesmo nas
situações classificadas como difíceis e onde muitos outros haviam falhado.
Posso afirmar que, em
consequência desta forma de agir, à qual costumo juntar uma dose quanto baste
de “bom senso” no que respeita à interpretação colateral de outras regras que sendo
supletivas interferem na interpretação justa e adequada da norma jurídica
central, sempre soube interpretar a legislação necessária ao exercício das
tarefas que me têm cabido realizar. E talvez por isso, sob minha
responsabilidade, o Tribunal de Contas nunca tenha recusado um visto à
Assembleia Distrital de Lisboa, entidade onde trabalho desde 1987.
Não é fácil, muito pelo
contrário. Ocupa-nos muito tempo, exige reflexão demorada. Mas o sentido do
dever cumprido e, sobretudo, o êxito dos resultados obtidos (mesmo quando não
são visíveis no imediato), confesso, dão-me um imenso gozo.
E esta minha maneira de pensar explica
o apego que, como cidadã e funcionária pública, tenho a alguns princípios dos
quais não abdico (entre eles: Igualdade, Imparcialidade, Ética, Integridade, Competência,
Responsabilidade) e, também, a aversão à interferência da Política na Justiça
(e vice-versa).
Passemos então, finalmente, à
análise do Acórdão
do Tribunal Central Administrativo Sul de dia 15 de janeiro de 2015 sobre
as Assembleias Distritais. E para não me repetir, aconselho a leitura prévia do
Comunicado
de Imprensa da Assembleia Distrital de Lisboa de 29 de janeiro.
Além das questões levantadas pela
ADL (incluindo as perguntas feitas à CCDR-LVT
e ao Tribunal
de Contas, a quem foi solicitado parecer ainda antes de se conhecer a
decisão do TCAS) esta peça de jurisprudência, fazendo uso do meu direito à livre
expressão (que penso não me ter sido ainda confiscado como já foram os meus
sete salários e o subsídio de férias), merece-me os comentários que a seguir
apresento, dirigidos a suas Excelências
Juiz António Vasconcelos
Juiz Pedro Marchão Marques
Juíza Conceição Silvestre.
Infere-se das palavras dos meritíssimos juízes, e sem margem para
quaisquer dúvidas, que a Lei n.º 36/2014, de 26 de junho, e o novo regime
jurídico das Assembleias Distritais entraram ambos em vigor no dia 1 de julho. Ou
seja, a partir daquela data, as Assembleias Distritais passaram a reger-se
pelas regras dos artigos 1.º a 11.º do Anexo ao diploma citado.
Assim sendo, perdoem-me a ignorância
de leiga, mas como podem estas entidades fazer cumprir os procedimentos que
constam do artigo 3.º do corpo da lei e que implicam custos (convocar uma assembleia
tem encargos) e executantes (a organização faz-se com pessoas e não por magia),
se nos termos do artigo 9.º do Anexo à Lei n.º 36/2014 estão proibidas de realizar
despesas e manter trabalhadores?
Ou, quererão Vossas Excelências
dizer que esse apoio (ao funcionamento e às reuniões da Assembleia Distrital)
deveria ser exclusivamente assegurado pelos municípios que a integram, de
acordo com os critérios fixados no regimento da mesma, como o artigo 8.º do
Anexo à Lei n.º 36/2014 refere?
Estarão Vossas Excelências a
sugerir que os trabalhadores que exerciam funções nas Assembleias Distritais até
ao dia 30 de junho deveriam ficar com os seus direitos suspensos e sem
vencimento por tempo indeterminado até que a Universalidade da qual fazem parte
fosse integrada numa nova entidade recetora, o que só irá acontecer após
concluídos os procedimentos expressos nos artigos 3.º a 5.º da Lei n.º 36/2014?
Mas se as novas competências das
Assembleias Distritais são apenas “discutir e deliberar, por iniciativa própria
ou a solicitação de outras entidades públicas, sobre questões relacionadas com
o interesse comum das populações do distrito ou o desenvolvimento económico e
social deste” e “elaborar e aprovar o seu regimento” (artigo 5.º do Anexo à Lei
n.º 36/2014), como podem estas entidades decidir sobre o destino da sua
Universalidade que, segundo a vossa douta opinião, inclui o património cujo
poder de administração lhes foi retirado?
Dizem Vossas Excelências que, em abono da verdade e em resultado da “interpretação
conjugada da Lei nº 36/2014, bem como do Anexo que aprovou o novo regime
jurídico” das Assembleias Distritais, “resulta nítido que foi intenção do
legislador conferir-lhes unicamente poderes de gestão interina, ou provisórios,
obrigando-as a encetarem o procedimento de transição das universalidades de que
são compostas, conforme decorre do artigo 3º da citada Lei.”
Saberão explicar-me, então, de
que forma milagrosa pode uma entidade exercer quaisquer poderes de “gestão
interina, ou provisórios”, por mais simples que possam ser, desprovida que está
de todos os meios logísticos e financeiros para o efeito?
E que argumentos jurídicos relevantes,
além da mera convicção pessoal, sustentam a presunção expressa em tão breves
palavras para demonstrar que a “intenção do legislador” apresentada é, de
facto, a correta?
Por exemplo, terão Vossas Excelências
tido em consideração as intervenções “do legislador” (isto é, dos deputados e
do Secretário de Estado) aquando da apresentação na Assembleia da República da
proposta do Governo que levou à publicação da Lei n.º 36/2014, na sessão
plenária de dia 2 de abril de 2014, e a reflexão havida em sede de discussão
na especialidade na Comissão do Ambiente, Ordenamento do Território e Poder
Local e que levaram, nomeadamente, à introdução do artigo 9.º?
Para contrariar a defesa
apresentada pela Assembleia Distrital de Lisboa, alegam Vossas Excelências que “o
artigo 9.º n.º 2 do Código Civil, aplicável ex
vi do artigo 1.º do CPTA” estabelece que: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal,
ainda que imperfeitamente expresso.” (curiosamente cópia exata do mesmo
argumento apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa na oposição ao
requerimento da ADL).
Não deixa de ser estranho,
todavia, o facto de os meritíssimos juízes excluírem-se a si próprios dessa
regra e acabarem por fazer uma análise interpretativa das “intenções do
legislador” baseados em meras presunções.
Dizem Vossas Excelências que “com
a entrada em vigor da Lei n.º 36/2014, e de acordo com o seu artigo 10.º, o
Decreto-Lei n.º 5/91, de 8 de janeiro (anterior regime jurídico das Assembleias
Distritais), foi derrogado, não tendo sobrado nenhum artigo deste diploma que
mantivesse vigência até à efetiva transferência e futura extinção das
assembleias distritais.”
Mas, em contrário, embora a alínea
b) do artigo 9.º do Anexo à Lei n.º 36/2014 também não refira exceção à proibição
de as Assembleias Distritais assumirem despesas, a douta sentença termina com a
frase “Custas pela Recorrente”.
Ora nos termos do presente acórdão
fica bem expresso que as Assembleias Distritais não podem realizar quaisquer
despesas pois disso estão proibidas.
Como pretendem então que a
Assembleia Distrital de Lisboa pague as custas do processo? Em coerência com a
conclusão do acórdão, não deveriam Vossas Excelências imputar esse encargo à
Entidade Recetora?
Segundo Pedro Machete “a boa fé,
enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito,
protege a confiança na actuação dos poderes públicos, exigindo um mínimo de
certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas legítimas de cada um
em face das autoridades públicas. Estas, pelo próprio poder que podem exercer,
têm de assegurar um mínimo de continuidade nas respectivas posições em face dos
particulares.” (III
Encontro de Professores de Direito Público, 29 de janeiro de 2010)
E o Supremo Tribunal
Administrativo considera mesmo que “a violação da boa fé pode configurar um
facto ilícito gerador de responsabilidade civil (artigo 6.º-A do CPA)” – Acórdão
de 09-07-2009.
Tendo presente que na Assembleia
Distrital de Lisboa, mercê do comportamento abusivo da Câmara de Lisboa que desde
janeiro de 2012, por decisão pessoal do seu Presidente, se recusa a pagar as
contribuições devidas nos termos do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 5/91 (uma
obrigação que o artigo 9.º da Lei n.º 36/2014 reforça ao mandar as autarquias
cumprir com esse dever), existe uma funcionária com sete meses de salários em
atraso (novembro de 2013 a maio de 2014) e quatro trabalhadores com o subsídio
de férias de 2014 ainda por receber, como encaram Vossas Excelências a aplicação
do princípio da boa fé ao absolver a autarquia, sabendo que com essa decisão
estão a premiar o infrator e a prejudicar os trabalhadores?
E muitas mais perguntas teria
para fazer, mas fico-me por aqui.