Consultada a
plataforma da contratação pública (Base.gov) ficamos a saber que o atual
executivo da Câmara Municipal de Almada
até ao dia 9 do corrente mês de julho registou 104 contratos celebrados por
ajuste direto para aquisição de serviços com pessoas singulares.
Em regra,
este tipo de despesa é cabimentada na rubrica orçamental 01.01.07 – Pessoal em
regime de tarefa ou avença. No orçamento da CMA para 2018 estão dotados
1.444.626€ e até à data assinalada foram já assumidos encargos no valor de
1.102.564€ (incluindo o IVA à taxa legal em vigor). De notar, porém, que alguns destes contratos são plurianuais.
93 Contratos – alínea a)
do artigo 20.º, e
4 Contratos – alínea b) do artigo 20.º:
Artigo 20.º
Escolha do
procedimento de formação de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis
e de aquisição de serviços
1 - Para a celebração de contratos de locação
ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, pode adotar-se um
dos seguintes procedimentos:
a) Concurso
público ou concurso limitado por prévia qualificação, com publicação de anúncio
no Jornal Oficial da União Europeia, qualquer que seja o valor do contrato;
(…)
d) Ajuste direto, quando o valor do contrato for inferior a (euro) 20
000.
5 Contratos – alínea c)
do n.º 1 do artigo 21.º:
Artigo 21.º
Escolha do procedimento
de formação de outros contratos
1 - No caso de contratos distintos dos
previstos nos artigos anteriores, que não configurem contratos de concessão de
obras públicas ou de concessão de serviços públicos, ou contratos de sociedade,
pode adotar-se um dos seguintes procedimentos:
(…)
c) Ajuste direto, quando o valor do contrato
seja inferior a (euro) 50 000.
2 Contratos – alínea b)
do n.º 1 do artigo 27.º:
Artigo 27.º
Escolha do
ajuste direto para a formação de contratos de aquisição de serviços
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 24.º,
no caso de contratos de aquisição de serviços, pode adotar-se o ajuste direto
quando:
(…)
b) A natureza das respetivas prestações,
nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a
elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que
sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação
de um critério de adjudicação, nos termos do disposto no artigo 74.º, e desde
que a definição quantitativa dos atributos das propostas, no âmbito de outros
tipos de procedimento, seja desadequada a essa fixação tendo em conta os
objetivos da aquisição pretendida;
Tratando-se
os 104 contratos acima referidos de ajustes diretos, aqueles 93 indicados como tendo
sido celebrados ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CPP (o que
supunha a realização de concurso público ou concurso limitado por prévia
qualificação) não estão corretamente classificados.
Noventa
destes contratos são de valor inferior a 20.000€ pelo que a respetiva
fundamentação deveria ser a alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º. Quanto aos
outros três, que têm valor superior àquele limite, mas que não atinge os
50.000€, supõe-se que deveriam ter sido enquadrados na alínea c) do n.º 1 do
artigo 21.º.
Estranhamente,
os cinco contratos classificados pela autarquia como estando enquadrados na
alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º são todos de valor inferior a 20.000€ pelo
que a opção correta para justificar o ajuste direto seria a alínea d) do n.º 1
do artigo 20.º e não aquela que foi indicada pela CMA.
Estas
ocorrências, que embora não causem quaisquer prejuízos na execução do contrato,
demonstram falta de cuidado no preenchimento da ficha de registo e sobretudo,
levam a que possamos ficar na dúvida sobre a possível existência de outras
falhas mais graves. E é essa circunstância que pode ser vir a ser lesiva da
imagem da autarquia.
Sendo certo que o CCP teve uma alteração já em 2018, posterior à submissão da maioria daqueles contratos na plataforma, é bom notar que os citados artigos mantêm a redação trazida da anterior versão pelo que o lapso é mesmo de flagrante desatenção.
Alguns dados
estatísticos (fonte da
informação – contratos celebrados por ajuste direto para aquisição de
serviços com pessoas singulares entre 01-11-2017 e 09-07-2018):
Contrato de valor mais elevado – 122.460€
Contrato de valor mais baixo – 528€
Valor médio por contrato – 8.478€
Valor diário mais elevado – 323€
Valor diário mais baixo – 2€
Valor diário médio – 32€
Para melhor
analisar o tipo de contratos que estão aqui em causa, separemo-los por assunto:
Valor médio dos contratos – 4.725,39€
Quantia média diária – 20,09€
Duração média do contrato – 235 dias
Valor médio dos contratos – 4.864€
Quantia média diária – 20,27€
Duração média do contrato – 240 dias
Apoio à vereação – 6 contratos. 135.990,60€ (sem IVA) para um total de 2.190 dias. Correspondem à
distribuição de assessores pelas diferentes forças políticas: PS (2), PSD (2),
CDU (1) e BE (1):
Valor médio dos contratos – 22.666,60€
Quantia média diária – 62,10€
Duração média do contrato – 365 dias
Valor médio dos contratos – 48.341,21€
Quantia média diária – 83,71€
Duração média do contrato – 578 dias
Valor médio dos contratos – 4.980€
Quantia média diária – 27,67€
Duração média do contrato – 180 dias
Apoio à Assembleia Municipal – 2 contratos. 27.999,84€ (sem IVA) para um total de 725 dias. Correspondem à
distribuição de assessores pelas forças políticas não representadas no órgão
executivo: CDS/PP (1) e PAN (1).
Valor médio dos contratos – 13.999,92€
Quantia média diária – 38,62€
Duração média do contrato – 363 dias
Importa
agora tecer algumas considerações sobre a forma como a Câmara Municipal de
Almada está a interpretar o RGPD (Regulamento Geral de Proteção de Dados) – Regulamento
(EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, que entrou
em vigor em 25-05-2016 e em aplicação plena em 25-05-2018 (sem necessidade de
transposição para o ordenamento jurídico português), nesta matéria da
contratação pública.
Mas
comecemos pelo esclarecimento que o próprio Portal Base.gov faz às entidades e
que a seguir transcrevemos na íntegra:
«No sentido de dar cumprimento ao disposto no
artigo 465º do Código dos Contratos Públicos, as entidades adjudicantes devem,
obrigatoriamente, de publicitar no Portal Base os elementos referentes à
formação dos contratos públicos, nos termos definidos na Portaria n.º 57/2018,
de 26 de fevereiro.
Nos termos da subalínea v) da alínea b) do
n.º 1 do artigo 4º da Portaria, o Portal BASE disponibiliza informação sobre a
formação dos contratos sujeitos à parte II do CCP e à execução dos contratos
sujeitos à parte III do CCP, incluindo "v) a publicitação dos contratos,
incluindo anexos e aditamentos, com a exceção das informações que se relacionem
com segredos de natureza comercial, industrial ou outra e das informações respeitantes
a dados pessoais” (sublinhado nosso).
De acordo com o Regulamento (EU) 2016/679 do
Parlamento Europeu e do Conselho, que entrou em vigor no dia 25 de maio de
2018, “Dados Pessoais” é a informação relativa a uma pessoa singular
identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada
identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou
indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo
um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por
via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física,
fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa
singular;”
Pese embora os constantes avisos, verifica-se
que alguns contratos publicados no Portal BASE não foram expurgados dos dados
pessoais dos respetivos intervenientes (designadamente os relativos aos números
de identificação civil e fiscal, ao estado civil e à residência) não tendo,
assim, sido acautelada a proteção de dados das pessoas singulares em
conformidade com o previsto no mencionado Regulamento Europeu bem como na Lei
nacional.
Assim, as entidades adjudicantes, antes de
submeter os contratos no Portal BASE, devem expurgar todos os dados pessoais
neles constantes, com exceção da identificação do contraente público e do
cocontratante.
Note-se que, de acordo com o disposto nos
n.ºs 5 e 6 do artigo 12.º da Portaria n.º 57/2018, de 26 de fevereiro, a
informação constante do Portal BASE e o cumprimento das normas nacionais e
comunitárias referentes à proteção de dados pessoais é da exclusiva
responsabilidade das entidades adjudicantes.»
Na nossa
opinião, o alerta em destaque é um contrassenso. Consideramos tratar-se de uma
recomendação sem sentido e que desvirtua não só o próprio RGPD como atenta
contra o princípio da transparência subjacente à existência da própria
plataforma. Senão vejamos:
Sendo certo
que neste tipo de documentos há dados pessoais, devemos ter presente que se
trata de informação necessária à formalização do contrato e encontra-se
inserida em contexto profissional de um procedimento de contratação pública que
obedece a regras específicas pelo que o princípio da privacidade não se pode
sobrepor ao do interesse público nesta matéria.
Assim,
sugerir às entidades adjudicantes que expurguem dos contratos a publicar os elementos
identificativos dos adjudicatários, parece-nos ser uma distorção do direito à
proteção de dados pessoais que, ao tornar secretas essas informações, limita o
dever da Administração Pública de agir de forma transparente, contraria o
princípio do arquivo aberto e apenas serve para impedir a sindicância do
público e incentivar a corrupção.
Por outro
lado, é evidente a contradição que existe entre:
A informação
que é necessária inserir na ficha que é obrigatório preencher e da qual consta
a identificação do adjudicatário através da inserção do seu nome e do respetivo
NIF: veja-se o exemplo dos registos que a CMA fez dos contratos de Ana Lourenço e de André
Salgado,
E a
recomendação que é feita quanto à necessidade de anonimizar os contratos a
publicar na medida em que os mesmos ficam sempre relacionados com o registo
inicial e permitem que fiquemos a saber a quem se referem os mesmos, como se pode
verificar consultando o contrato de
Ana Lourenço ou o contrato de
André Salgado, os dois exemplos acima referidos.
Retomemos a
discussão em torno do RGPD.
«A presente diretiva não prejudica o
princípio do direito de acesso do público aos documentos oficiais. Ao abrigo do
Regulamento (UE) 2016/679, os dados pessoais que constem de documentos oficiais
na posse de uma autoridade pública ou de um organismo público ou privado para o
exercício de funções de interesse público podem ser divulgados por essa
autoridade ou organismo nos termos do direito da União ou do Estado-Membro que
for aplicável à autoridade ou organismo público, a fim de conciliar o acesso do
público a documentos oficiais com o direito à proteção dos dados pessoais.»
Com o
expresso no artigo 86.º do RGPD:
«Os dados pessoais que constem de documentos
oficiais na posse de uma autoridade pública ou de um organismo público ou
privado para a prossecução de atribuições de interesse público podem ser
divulgados pela autoridade ou organismo nos termos do direito da União ou do
Estado-Membro que for aplicável à autoridade ou organismo público, a fim de
conciliar o acesso do público a documentos oficiais com o direito à proteção
dos dados pessoais nos termos do presente regulamento.»
E tendo
ainda em atenção o n.º 1 do artigo 6.º do RGPD que nos informa de que o tratamento
é lícito desde que se verifique pelo menos uma das situações elencadas, entre
elas:
Se o tratamento for necessário para a
execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para
diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados;
Se o tratamento for necessário para o
cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento
esteja sujeito.
Sem esquecer:
O disposto
no artigo 17.º (princípio da administração aberta) e as referências expressas à
transparência enunciadas no n.º 1 do artigo 14.º (princípios aplicáveis à
administração eletrónica) e no n.º 2 do artigo 201.º (procedimentos
pré-contratuais) do Código
do Procedimento Administrativo, e
O regime de
acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos
administrativos, expresso na Lei
n.º 26/2016, de 22 de agosto, que transpôs a Diretiva 2003/4/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro, e a Diretiva 2003/98/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de novembro, para o nosso ordenamento
jurídico.
Somos da
mesma opinião da Ana Fernanda Neves da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa que no seu artigo “Os dados pessoais do domínio público” (publicado na
revista a Associação de Estudos de Direito Regional e Local, Questões Atuais de Direito Local, n.º
16, de outubro/dezembro, p. 7-22) conclui que,
«O direito à proteção dos dados pessoais não é
um direito ao anonimato de qualquer pessoa que se relacione com a Administração,
que participe em procedimentos administrativos ou que exerça a qualquer título
funções públicas.
Um documento administrativo com um nome não é
um documento confidencial. É um documento público com um dado pessoal.
Os dados pessoais objeto de recolha legítima
são públicos nos termos dos fundamentos e finalidades da respetiva recolha. O “exercício
do direito à proteção dos dados pessoais […] não pode ser utilizado em geral
para impedir o acesso aos documentos públicos”.
Portugal é um dos pouquíssimos países da
Europa que não integra The
Open Government Partnership, emparceirando, nesta escolha, no plano
mundial, ao lado de países como a Rússia e a Etiópia.»
No caso
concreto de Almada, não podemos deixar de ligar,
A anonimização
dos adjudicatários seguida pelo atual executivo PS/PSD, que se supõe baseada
numa interpretação restritiva do RGPD (que mais não é do que consequência do
provável desconhecimento que os responsáveis da autarquia, a nível técnico e
político, terão sobre a matéria em causa) que por ser complexa e polémica
careceria de um esforço redobrado na aquisição de conhecimentos específicos e
bastante bom senso na aplicação das normas,
À péssima
posição do município no índice da transparência (um vergonhoso 199.º
lugar em 2016 e que em 2017 desceu para o humilhante 206.º lugar) que
resultou das más práticas dos anteriores executivos da CDU.
Para
concluir que nos custa compreender as razões que sustentarão tal atitude numa uma
autarquia que logo no início do presente mandato deliberou
criar o Portal da Transparência (embora continuemos a aguardar) pois as
mesmas representam um retrocesso em relação aos objetivos então expressos.