Ou, Quem protege a nossa palavra se até o tribunal a deturpa?
Ainda
sobre a sentença referida no meu artigo
anterior (Processo n.º 2874/16.4BESLB do TACL, de 28-02-2020, sobre a
dívida da câmara de Lisboa à assembleia distrital), não posso deixar de trazer
à colação um pormenor que, sinceramente, me deixou bastante chocada, embora se
trate de um assunto à margem da questão central e a sua apreciação não tivesse
contribuído para alterar o desfecho do processo.
Em
resumo, pretendia o tribunal apurar se a Câmara Municipal de Lisboa (CML) exercera
(ou não) pressão sobre os trabalhadores da Assembleia Distrital de Lisboa (ADL)
que tinham pedido transferência para o município em novembro de 2014 (embora,
confesso, não perceba qual foi o objetivo deste desvio).
Considerou
a juíza como não provado “que os trabalhadores integrados no Município de
Lisboa na sequência das negociações entre esta entidade e a ADL tenham sido
coagidos de alguma forma a solicitar a transferência por mobilidade” por, além
dos meios de prova existentes junto aos autos – declarações individuais
solicitando a transição (prova suficiente de que os pedidos tinham sido uma
“decisão voluntária” inequívoca) –, não terem sido coligidos outros.
Mais
adiante é ainda referido, como motivo para aquela conclusão, o facto de o
tribunal não ter “apurado as concretas circunstâncias em que a questão da
transição foi colocada aos trabalhadores” e a circunstância de o depoimento da única
testemunha que falara em coação ter sido desvalorizado por, alegadamente, refletir
um “conhecimento indireto” dos factos já que a trabalhadora em causa “não
estaria presente em tal momento” e se limitara a transmitir o que os colegas
lhe haviam dito.
Acontece,
porém, que isto não é verdade. Não é verdade, reafirmo-o!
Primeiro
porque a referida testemunha sou eu e não foi isso que testemunhei em tribunal.
Se aqui neste mesmo espaço já denunciara
a situação, não era perante a juíza que me ia coibir de dizer a verdade: ao
contrário do que a juíza concluiu e transpor para a sentença, tive conhecimento
direto, presencial, das intimidações que o secretário geral da CML fez aos
trabalhadores da ADL quando se deslocou à Biblioteca dos Serviços de Cultura no
dia 7 de novembro de 2014. E foi isso que disse em tribunal.
Aliás,
na sequência dessa visita, os trabalhadores presentes subscreveram um documento
(que é público) dando notícia dessa ocorrência, entre os quais me encontro. E
lembro-me bem da postura prepotente daquele senhor, da forma humilhante como se
dirigia aos funcionários da ADL e, em particular, da ameaça implícita nas
palavras de despedida que nos dirigiu: “Têm consciência de que a partir de
janeiro nenhuma câmara vai pagar mais à Assembleia Distrital? Querem ficar aqui
sem nada para fazer e sem ordenado durante meses [naquela data apenas a
Diretora dos Serviços de Cultura tinha salários em atraso]? Ou querem aceitar a
proposta da Câmara e serem transferidos por mobilidade para o Município de
Lisboa? A escolha é vossa!”
Colocados
perante cenário tão negro, os trabalhadores visados (à exceção de mim própria
que me recusei a ser vítima daquele tipo de chantagem), logo no dia seguinte,
compreensivelmente, trataram de apresentar um requerimento solicitando a
mobilidade para o Município de Lisboa a qual acabou por produzir efeitos a
01-11-2014.
E
são estas as tais declarações individuais que o tribunal considerou como prova
bastante para demonstrar a inexistência de pressão por parte do município?
Depois
de prestar o meu depoimento em tribunal (como testemunha do Ministério das
Finanças), que sei foi gravado (assim me informou a própria juíza que presidia
à sessão), só tive conhecimento da sentença em julho de 2021, cerca de um ano
após o trânsito em julgado. Mesmo que tivesse sabido disso mais cedo não sei se
seria possível (ou sequer se valeria a pena) levantar o problema, mas muito
gostaria de saber que razão justifica que o tribunal tivesse alterado o sentido
das minhas palavras. Considero esta situação muitíssimo grave e, confesso,
deixa-me sérias dúvidas sobre a imparcialidade da justiça. Afinal parece que a
nossa palavra não vale pelo que dizemos efetivamente, mas por aquilo que
alguém, sem o nosso consentimento, considera conveniente que tenhamos dito.
Uma
nota final: não consigo deixar de relacionar este episódio com o processo Russiagate. Porquê?
Pelo envolvimento da SG da CML! Na primeira situação teve uma participação
ativa (aliás, houve mesmo o empenhado pessoal do próprio SG) e na segunda pecou
por ausência. Em ambos os casos, aquela que deveria ter sido uma
responsabilidade direta na verificação do cumprimento da legalidade
procedimental, acabou por ser, antes (por ação e omissão, respetivamente) a
garantia de que a autarquia violava a lei.