sábado, 31 de janeiro de 2015

DESAJUSTES DE UM ACÓRDÃO


Breve reflexão sobre o papel da jurisprudência em prol de uma maior justiça administrativa

Começo este texto por uma espécie de “declaração metodológica” de princípios.

Não sou jurista mas lido, amiúde, com legislação e tenho por hábito consultar acórdãos dos Tribunais em assuntos de direito regional e local que versem, sobretudo, matérias na esfera de competências das autarquias porque, confesso, gosto de apreciar o confronto argumentativo de ambas as partes e assim aprender com casos práticos e não ficar reduzida à teorização doutrinal de interpretações egocêntricas das normas legais por mais bem elaborados que os pareceres em causa possam ser.

Deixo um exemplo concreto da importância desta análise jurídica comparativa e de como ela nos permite encontrar as melhores soluções e ultrapassar os constrangimentos que o complexo quadro legal da nossa Administração Pública por vezes nos trás:

No âmbito das funções que desempenho na área da gestão autárquica há mais de duas décadas consecutivas, tive de organizar alguns processos a submeter à aprovação do Tribunal de Contas. Na sua preparação socorri-me do estudo prévio de casos semelhantes (através da leitura dos respetivos acórdãos) e cujo visto fora recusado para não cometer as mesmas falhas e aprender como satisfazer, na íntegra, todos os requisitos legalmente pretendidos e redigir uma formulação consistente que permitisse a obtenção da indispensável declaração de conformidade mesmo nas situações classificadas como difíceis e onde muitos outros haviam falhado.

Posso afirmar que, em consequência desta forma de agir, à qual costumo juntar uma dose quanto baste de “bom senso” no que respeita à interpretação colateral de outras regras que sendo supletivas interferem na interpretação justa e adequada da norma jurídica central, sempre soube interpretar a legislação necessária ao exercício das tarefas que me têm cabido realizar. E talvez por isso, sob minha responsabilidade, o Tribunal de Contas nunca tenha recusado um visto à Assembleia Distrital de Lisboa, entidade onde trabalho desde 1987.

Não é fácil, muito pelo contrário. Ocupa-nos muito tempo, exige reflexão demorada. Mas o sentido do dever cumprido e, sobretudo, o êxito dos resultados obtidos (mesmo quando não são visíveis no imediato), confesso, dão-me um imenso gozo.

E esta minha maneira de pensar explica o apego que, como cidadã e funcionária pública, tenho a alguns princípios dos quais não abdico (entre eles: Igualdade, Imparcialidade, Ética, Integridade, Competência, Responsabilidade) e, também, a aversão à interferência da Política na Justiça (e vice-versa).

Passemos então, finalmente, à análise do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de dia 15 de janeiro de 2015 sobre as Assembleias Distritais. E para não me repetir, aconselho a leitura prévia do Comunicado de Imprensa da Assembleia Distrital de Lisboa de 29 de janeiro.

Além das questões levantadas pela ADL (incluindo as perguntas feitas à CCDR-LVT e ao Tribunal de Contas, a quem foi solicitado parecer ainda antes de se conhecer a decisão do TCAS) esta peça de jurisprudência, fazendo uso do meu direito à livre expressão (que penso não me ter sido ainda confiscado como já foram os meus sete salários e o subsídio de férias), merece-me os comentários que a seguir apresento, dirigidos a suas Excelências
Juiz António Vasconcelos
Juiz Pedro Marchão Marques
Juíza Conceição Silvestre.

Infere-se das palavras dos meritíssimos juízes, e sem margem para quaisquer dúvidas, que a Lei n.º 36/2014, de 26 de junho, e o novo regime jurídico das Assembleias Distritais entraram ambos em vigor no dia 1 de julho. Ou seja, a partir daquela data, as Assembleias Distritais passaram a reger-se pelas regras dos artigos 1.º a 11.º do Anexo ao diploma citado.

Assim sendo, perdoem-me a ignorância de leiga, mas como podem estas entidades fazer cumprir os procedimentos que constam do artigo 3.º do corpo da lei e que implicam custos (convocar uma assembleia tem encargos) e executantes (a organização faz-se com pessoas e não por magia), se nos termos do artigo 9.º do Anexo à Lei n.º 36/2014 estão proibidas de realizar despesas e manter trabalhadores?

Ou, quererão Vossas Excelências dizer que esse apoio (ao funcionamento e às reuniões da Assembleia Distrital) deveria ser exclusivamente assegurado pelos municípios que a integram, de acordo com os critérios fixados no regimento da mesma, como o artigo 8.º do Anexo à Lei n.º 36/2014 refere?

Estarão Vossas Excelências a sugerir que os trabalhadores que exerciam funções nas Assembleias Distritais até ao dia 30 de junho deveriam ficar com os seus direitos suspensos e sem vencimento por tempo indeterminado até que a Universalidade da qual fazem parte fosse integrada numa nova entidade recetora, o que só irá acontecer após concluídos os procedimentos expressos nos artigos 3.º a 5.º da Lei n.º 36/2014?

Mas se as novas competências das Assembleias Distritais são apenas “discutir e deliberar, por iniciativa própria ou a solicitação de outras entidades públicas, sobre questões relacionadas com o interesse comum das populações do distrito ou o desenvolvimento económico e social deste” e “elaborar e aprovar o seu regimento” (artigo 5.º do Anexo à Lei n.º 36/2014), como podem estas entidades decidir sobre o destino da sua Universalidade que, segundo a vossa douta opinião, inclui o património cujo poder de administração lhes foi retirado?

Dizem Vossas Excelências que, em abono da verdade e em resultado da “interpretação conjugada da Lei nº 36/2014, bem como do Anexo que aprovou o novo regime jurídico” das Assembleias Distritais, “resulta nítido que foi intenção do legislador conferir-lhes unicamente poderes de gestão interina, ou provisórios, obrigando-as a encetarem o procedimento de transição das universalidades de que são compostas, conforme decorre do artigo 3º da citada Lei.”

Saberão explicar-me, então, de que forma milagrosa pode uma entidade exercer quaisquer poderes de “gestão interina, ou provisórios”, por mais simples que possam ser, desprovida que está de todos os meios logísticos e financeiros para o efeito?

E que argumentos jurídicos relevantes, além da mera convicção pessoal, sustentam a presunção expressa em tão breves palavras para demonstrar que a “intenção do legislador” apresentada é, de facto, a correta?

Por exemplo, terão Vossas Excelências tido em consideração as intervenções “do legislador” (isto é, dos deputados e do Secretário de Estado) aquando da apresentação na Assembleia da República da proposta do Governo que levou à publicação da Lei n.º 36/2014, na sessão plenária de dia 2 de abril de 2014, e a reflexão havida em sede de discussão na especialidade na Comissão do Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local e que levaram, nomeadamente, à introdução do artigo 9.º?

Para contrariar a defesa apresentada pela Assembleia Distrital de Lisboa, alegam Vossas Excelências que “o artigo 9.º n.º 2 do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA” estabelece que: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” (curiosamente cópia exata do mesmo argumento apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa na oposição ao requerimento da ADL).

Não deixa de ser estranho, todavia, o facto de os meritíssimos juízes excluírem-se a si próprios dessa regra e acabarem por fazer uma análise interpretativa das “intenções do legislador” baseados em meras presunções.

Dizem Vossas Excelências que “com a entrada em vigor da Lei n.º 36/2014, e de acordo com o seu artigo 10.º, o Decreto-Lei n.º 5/91, de 8 de janeiro (anterior regime jurídico das Assembleias Distritais), foi derrogado, não tendo sobrado nenhum artigo deste diploma que mantivesse vigência até à efetiva transferência e futura extinção das assembleias distritais.”

Mas, em contrário, embora a alínea b) do artigo 9.º do Anexo à Lei n.º 36/2014 também não refira exceção à proibição de as Assembleias Distritais assumirem despesas, a douta sentença termina com a frase “Custas pela Recorrente”.

Ora nos termos do presente acórdão fica bem expresso que as Assembleias Distritais não podem realizar quaisquer despesas pois disso estão proibidas.

Como pretendem então que a Assembleia Distrital de Lisboa pague as custas do processo? Em coerência com a conclusão do acórdão, não deveriam Vossas Excelências imputar esse encargo à Entidade Recetora?

Segundo Pedro Machete “a boa fé, enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito, protege a confiança na actuação dos poderes públicos, exigindo um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas legítimas de cada um em face das autoridades públicas. Estas, pelo próprio poder que podem exercer, têm de assegurar um mínimo de continuidade nas respectivas posições em face dos particulares.” (III Encontro de Professores de Direito Público, 29 de janeiro de 2010)

E o Supremo Tribunal Administrativo considera mesmo que “a violação da boa fé pode configurar um facto ilícito gerador de responsabilidade civil (artigo 6.º-A do CPA)” – Acórdão de 09-07-2009.

Tendo presente que na Assembleia Distrital de Lisboa, mercê do comportamento abusivo da Câmara de Lisboa que desde janeiro de 2012, por decisão pessoal do seu Presidente, se recusa a pagar as contribuições devidas nos termos do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 5/91 (uma obrigação que o artigo 9.º da Lei n.º 36/2014 reforça ao mandar as autarquias cumprir com esse dever), existe uma funcionária com sete meses de salários em atraso (novembro de 2013 a maio de 2014) e quatro trabalhadores com o subsídio de férias de 2014 ainda por receber, como encaram Vossas Excelências a aplicação do princípio da boa fé ao absolver a autarquia, sabendo que com essa decisão estão a premiar o infrator e a prejudicar os trabalhadores?


E muitas mais perguntas teria para fazer, mas fico-me por aqui.

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails