sexta-feira, 25 de junho de 2021

O enigma do artigo 291.º da Constituição.


 

Os distritos chegaram a 1974 como autarquia, mas os seus órgãos foram dissolvidos logo nesse ano. Todavia, em 1976, embora com existência precária e fim anunciado, viriam a ter honras constitucionais (artigo 291.º com a revisão de 1989), enquanto não fossem criadas as regiões administrativas. Entretanto, mantinha-se o governador civil e previa-se uma assembleia distrital composta por representantes dos municípios, presidida por aquele até 1991 e, a partir daí, por um autarca eleito entre os seus pares, uma transição pacífica em todo o país à exceção de Lisboa que terminou em tribunal numa luta pela posse do património predial (avaliado em mais de 40 milhões de euros) herdado da junta distrital, que as autarquias diziam pertencer-lhes e o governo civil reclamava como seu.

Com o advento do poder local, os políticos foram-se desinteressando do distrito até que em 1998 o resultado do referendo fez gorar as expetativas da criação das regiões administrativas. À época, como contraponto à regionalização, o parlamento ainda chegou a apreciar um diploma do PSD que previa a revitalização das assembleias distrais que, contudo, nunca viria a ser implementado.

Durante mais de uma década o distrito desapareceu dos discursos oficiais, a situação das assembleias distritais foi-se degradando perante a indiferença dos responsáveis políticos e no início do novo milénio a maioria estava desativada e as restantes, salvo raras exceções, atravessavam uma insustentável asfixia financeira. Mas só em 2014 o Governo resolveu agir propondo à Assembleia da República que extinguisse os serviços das assembleias distritais e transferisse as suas universalidades jurídicas para outras entidades da administração pública, à semelhança do que fizera em 2011 com a não nomeação dos governadores civis.

Considerando que “o regime, a situação e o funcionamento das assembleias distritais” era obsoleto face às últimas alterações verificadas ao nível das autarquias locais, o Governo propôs-se “operar uma reforma profunda” sobre a matéria. Contudo, ficou-se pela publicação de um regime jurídico minimalista que se limitou a retirar personalidade jurídica àqueles órgãos e a proibi-los de angariar receitas, assumir despesas, contrair empréstimos e manter trabalhadores. Ou seja, o legislador, em vez de rever o artigo 291.º da Constituição optou por transformá-lo numa aberração jurídica aumentando o leque das inconstitucionalidades por omissão ao nível da divisão administrativa do país – como é o caso da autarquia regional prevista desde 1976, mas nunca criada.

Um órgão esvaziado de funções, que resulta de uma imposição legal e que somente pode funcionar como fórum de debate autárquico juntando entidades sem uma correspondência territorial orgânica, não tem qualquer utilidade prática e está destinado ao fracasso como o facto de não se conhecer nenhuma assembleia distrital que, depois de 2014, tenha sido formalmente constituída e/ou alguma vez tenha reunido enquanto tal, o prova.

Concluindo, o artigo 291.º da Constituição não foi alterado porque isso implicaria uma revisão do sistema eleitoral: “os círculos eleitorais do continente coincidem com as áreas dos distritos administrativos, são designados pelo mesmo nome e têm como sede as suas capitais” (n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 14/79, de 16 de maio). E como os distritos são, subsidiariamente, o suporte geográfico para a organização interna dos partidos políticos, isso terá levado à sua manutenção no texto constitucional.

terça-feira, 22 de junho de 2021

A apologia da irresponsabilidade!


 

Sou funcionária pública desde 1987 e até 2015 trabalhei num organismo de âmbito supramunicipal, onde fui dirigente durante dez anos, pelo que a gestão autárquica é um tema que me seduz. Talvez por isso me sinta tão chocada com os contornos daquele que é conhecido como “Russiagate”. Não só pelo escândalo que a situação em si representa, mas, sobretudo, pelas declarações de Fernando Medina desculpabilizando os serviços e remetendo as responsabilidades das infrações cometidas para a herança recebida do Governo Civil e para a “inércia da burocracia” que, ao “operar sobre um procedimento rotineiro”, causou “um problema sério” ao município, explicações que considero vergonhosas por contrariarem todos os princípios da boa administração e promoverem o culto da incompetência acéfala.

E depois de saber quais foram as conclusões da auditoria sumária realizada pela autarquia, ainda mais indignada fiquei com aquela postura do presidente da câmara por, na minha opinião, configurar uma apologia da irresponsabilidade: desde 2011 que o envio de dados pessoais dos manifestantes a terceiros era uma prática corrente dos serviços, apesar da inexistência de cobertura legal para o efeito (a lei de 1974 a isso não obriga) e do incumprimento do despacho do presidente da câmara de 2013 (uma espécie de “nado morto”), com a agravante de ser um procedimento que se manteve inalterado após a entrada em vigor do RGPD em 2018.

Por outro lado, ao constatar que a assunção de quase uma década de contínuos atos ilícitos se resume à exoneração do encarregado de proteção de dados, como se esta figura centralizasse em si o ónus cumulativo dos erros cometidos desde 2011, faz-me crer que esta decisão não passa de uma trôpega tentativa de apresentar à comunicação social um “noivo de conveniência” para que se não diga que, mais uma vez, a culpa vai morrer solteira. E como “dama de companhia” acrescenta-se a inexplicável extinção do gabinete de apoio à presidência.

Todavia, porque anos sucessivos de incumprimento só podem ser o resultado da incompetência técnica de quem executava e da gestão negligente de quem dirigia, aquelas diligências mais parecem uma manobra para desviar a atenção do cerne do problema: a desorganização dos serviços, a inabilidade da direção da unidade orgânica diretamente envolvida, o laxismo do sistema de controlo interno do município e um Plano de Prevenção dos Riscos de Gestão inoperante. Ou seja, apresentar a tradição como justificação e arranjar um “bode expiatório” só torna o caso ainda mais suspeito.

A terminar, escolho duas entre as muitas perguntas que se podiam colocar:

Qual é, afinal, o papel da “EPIRGPD – Equipa de Projeto para a Implementação do RGPD no Município de Lisboa”, nomeada em 2018 para, nomeadamente: acompanhar as ações de adequação de procedimentos, avaliação da respetiva conformidade, inventariação das debilidades detetadas e apresentação de propostas de ajuste e apoio à revisão das políticas atuais de privacidade e de armazenamento de dados?

Como foi possível aquelas irregularidades nunca terem sido detetadas durante a fase de diagnóstico (a cargo da LCG-Consultoria, SA) uma vez que foram realizadas dezenas de reuniões com as diversas unidades orgânicas e com a EPIRGPD para levantamento e mapeamento das atividades de tratamento e apresentados mais de duas dezenas de PIA (Análises de Impacto na Privacidade)?

  

Imagem: retirada da página web do município de Lisboa.

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