Soubemos, nos últimos dias, que o Governo ia apresentar em meados
do ano corrente (lá para julho, talvez) uma proposta de alteração ao sistema de
avaliação em vigor na administração pública (abrangendo serviços, dirigentes e
trabalhadores) conforme foi noticiado na imprensa: Observador, Diário de
Notícias, Jornal de
Negócios, etc. etc.
Embora nem Governo nem sindicatos pareçam preocupados com o
problema, urge perguntar:
De que serve o SIADAP voltar a ser anual e aumentar a grelha (escala)
de avaliação quando se mantém o cumulo de pontos (10) para progressão
obrigatória e o total de níveis remuneratórios (14)?
Mas, sobretudo, há duas questões que se impõem (e que,
lamentavelmente, parecem arredadas das “negociações”) – de que servem
alterações pontuais no SIADAP, se continua:
- A não se prever a obrigatoriedade de haver quaisquer mecanismos (de
auditoria interna, por exemplo) que impeçam as múltiplas situações de
favorecimento (como as que aqui já denunciei nos dias 11, 21 e 30 de janeiro
último)?
- Sem se promover a clarificação dos conceitos utilizados na
descrição das competências (como sejam, nomeadamente: inovação e qualidade)?
- A omitir-se quais são os critérios de ponderação dos quatro descritores
comportamentais em que se desdobram cada uma das competências a demonstrar?
- A apostar-se no secretismo das várias fases do ciclo avaliativo
que impede a transparência do processo de avaliação?
Ao que tudo indica, o Governo pretende apenas, como o
coordenador da Frente Comum, Sebastião Santana, refere propor meras
“alterações de cosmética” que em nada contribuirão para transformar o SIADAP
num sistema mais justo e equitativo, opinião que partilhamos. Todavia
estranha-se que as questões acima indicadas pareçam estar de fora das
discussões e não constem do “caderno reivindicativo” … como se, mesmo para os
sindicatos, fosse importante a lei manter uma “porta aberta” para a
arbitrariedade?
Há, no entanto, uma outra perspetiva de análise que levanta uma
dúvida muito séria, mas que é tabu e ninguém tem coragem de sobre ela refletir:
estará o comportamento pouco ético de alguns
dirigentes, que avaliam por simpatia (ou favor) e não por mérito, e a atitude
passiva de quem aceita uma classificação que sabe não merecer, a transformar o
SIADAP num instrumento que facilita a corrupção?
Na nossa opinião, a resposta é: SIM! Porquê? Leiam atentamente o
que se segue…
Comecemos por apresentar uma breve descrição sobre o conceito de
corrupção, utilizando a síntese da Direção-Geral
da Política de Justiça: “O crime de corrupção
implica a conjugação dos seguintes quatro elementos: uma ação ou omissão; a
prática de um ato lícito ou ilícito; a contrapartida de uma vantagem indevida;
para o próprio ou para terceiro.”
Apesar do SIADAP incluir uma série de atividades com risco
potencial, nalguns casos até bastante elevado, de haver quebra dos deveres de
transparência, isenção e imparcialidade (como aqui já o demonstrámos: em 11, 21 e 30 de janeiro),
salvo raríssimas exceções, os “Planos de prevenção dos riscos de gestão,
incluindo os de corrupção e infrações conexas” por nós consultados (e foram
dezenas) quando abordam a área dos recursos humanos omitem qualquer referência
aos procedimentos associados à avaliação do desempenho dos dirigentes e
trabalhadores da organização, tal como acontece com o serviço cujas práticas
denunciámos nos três artigos atrás referidos).
E disso mesmo já dava notícia, em 2017, o Ministério da Defesa
Nacional no seu Plano de gestão dos riscos de corrupção e infrações conexas (p. 21):
Todos os serviços da administração pública (central e local) que
aplicam o SIADAP correm estes riscos, mesmo que os não enquadrem nos respetivos
planos de prevenção da corrupção. E quando nesses serviços acontece que não
existe sequer um sistema de controlo interno (apesar de ser legalmente
obrigatório – artigo 9.º do Decreto-Lei
n.º 192/2015, de 11 de setembro) é óbvio que a salvaguarda da legalidade está comprometida (e não
apenas na área dos recursos humanos).
Por inexistência da adequada gestão de riscos este é, pois, o ambiente
propício à proliferação dos “desvios” que assinalámos nos artigos dos dias 11, 21 e 30 de janeiro, ao
criar nos infratores uma sensação de impunidade: e assim se continua a
beneficiar os trabalhadores “amigos e conhecidos” (que progridem mais
rapidamente na carreira e com isso obtêm vantagens salariais que, numa
avaliação justa, seriam imerecidas) em detrimento daqueles cujo mérito sendo
evidente é, ostensivamente, não reconhecido, com prejuízo remuneratório.
Carlos Vares (2019) no blogue Gnose.
Cidadania Ativa, a propósito do descontentamento que o SIADAP gera junto dos
trabalhadores da administração pública, escreveu:
“Na avaliação dos trabalhadores e dirigentes, são definidos
objectivos confidenciais entre o Avaliador e o Avaliado, normalmente, nenhum
funcionário, mesmo trabalhando na mesma equipa e organização, conhece os
objectivos (e grau de dificuldade) dos outros. A confidencialidade nos métodos
de avaliação cria suspeição sobre o ‘benefício’ a alguns trabalhadores em
detrimento de outros. Imagine que se entrega a um Técnico Superior o difícil
objectivo de conceber um projecto de execução complexa e a outro, o simples
preenchimento de uma tabela Excel. Como distinguir pela nota, a dificuldade, a
aptidão e os conhecimentos colocados na execução do trabalho? No entanto, o
trabalho mais fácil pode sair imaculado e o outro talvez não. (…)
Embora descontentes, a maioria dos funcionários públicos não
exercem o seu direito de reclamação, por medo de serem depois lesados pelo
Avaliador. Em casos mais graves, são até aconselhados pelos próprios
Avaliadores a não reclamar, com promessas de justiça na próxima avaliação. É
caricata a bola de neve da injustiça.”
Em conclusão:
Este ambiente de secretismo do SIADAP que alguns dirigentes, na
defesa de interesses pouco claros, levam ao exagero incumprindo até as regras
de publicitação que o próprio sistema impõe (comportamentos que contrariam o
princípio da transparência a que todos os organismos da administração pública
devem obedecer), na nossa opinião, é um incentivo ao tráfico de
influências e abuso de
poder,
duas práticas que configuram crimes enquadráveis na designação genérica de
corrupção.