sábado, 4 de fevereiro de 2023

O SIADAP favorece a corrupção?


 

Soubemos, nos últimos dias, que o Governo ia apresentar em meados do ano corrente (lá para julho, talvez) uma proposta de alteração ao sistema de avaliação em vigor na administração pública (abrangendo serviços, dirigentes e trabalhadores) conforme foi noticiado na imprensa: Observador, Diário de Notícias, Jornal de Negócios, etc. etc.

Embora nem Governo nem sindicatos pareçam preocupados com o problema, urge perguntar:

De que serve o SIADAP voltar a ser anual e aumentar a grelha (escala) de avaliação quando se mantém o cumulo de pontos (10) para progressão obrigatória e o total de níveis remuneratórios (14)?

Mas, sobretudo, há duas questões que se impõem (e que, lamentavelmente, parecem arredadas das “negociações”) – de que servem alterações pontuais no SIADAP, se continua:

  • A não se prever a obrigatoriedade de haver quaisquer mecanismos (de auditoria interna, por exemplo) que impeçam as múltiplas situações de favorecimento (como as que aqui já denunciei nos dias 11, 21 e 30 de janeiro último)?
  • Sem se promover a clarificação dos conceitos utilizados na descrição das competências (como sejam, nomeadamente: inovação e qualidade)?
  • A omitir-se quais são os critérios de ponderação dos quatro descritores comportamentais em que se desdobram cada uma das competências a demonstrar?
  • A apostar-se no secretismo das várias fases do ciclo avaliativo que impede a transparência do processo de avaliação?

Ao que tudo indica, o Governo pretende apenas, como o coordenador da Frente Comum, Sebastião Santana, refere propor meras “alterações de cosmética” que em nada contribuirão para transformar o SIADAP num sistema mais justo e equitativo, opinião que partilhamos. Todavia estranha-se que as questões acima indicadas pareçam estar de fora das discussões e não constem do “caderno reivindicativo” … como se, mesmo para os sindicatos, fosse importante a lei manter uma “porta aberta” para a arbitrariedade?

Há, no entanto, uma outra perspetiva de análise que levanta uma dúvida muito séria, mas que é tabu e ninguém tem coragem de sobre ela refletir: estará o comportamento pouco ético de alguns dirigentes, que avaliam por simpatia (ou favor) e não por mérito, e a atitude passiva de quem aceita uma classificação que sabe não merecer, a transformar o SIADAP num instrumento que facilita a corrupção?

Na nossa opinião, a resposta é: SIM! Porquê? Leiam atentamente o que se segue…

Comecemos por apresentar uma breve descrição sobre o conceito de corrupção, utilizando a síntese da Direção-Geral da Política de Justiça: “O crime de corrupção implica a conjugação dos seguintes quatro elementos: uma ação ou omissão; a prática de um ato lícito ou ilícito; a contrapartida de uma vantagem indevida; para o próprio ou para terceiro.”

Apesar do SIADAP incluir uma série de atividades com risco potencial, nalguns casos até bastante elevado, de haver quebra dos deveres de transparência, isenção e imparcialidade (como aqui já o demonstrámos: em 11, 21 e 30 de janeiro), salvo raríssimas exceções, os “Planos de prevenção dos riscos de gestão, incluindo os de corrupção e infrações conexas” por nós consultados (e foram dezenas) quando abordam a área dos recursos humanos omitem qualquer referência aos procedimentos associados à avaliação do desempenho dos dirigentes e trabalhadores da organização, tal como acontece com o serviço cujas práticas denunciámos nos três artigos atrás referidos).

E disso mesmo já dava notícia, em 2017, o Ministério da Defesa Nacional no seu Plano de gestão dos riscos de corrupção e infrações conexas (p. 21):



Todos os serviços da administração pública (central e local) que aplicam o SIADAP correm estes riscos, mesmo que os não enquadrem nos respetivos planos de prevenção da corrupção. E quando nesses serviços acontece que não existe sequer um sistema de controlo interno (apesar de ser legalmente obrigatório – artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 192/2015, de 11 de setembro) é óbvio que a salvaguarda da legalidade está comprometida (e não apenas na área dos recursos humanos).

Por inexistência da adequada gestão de riscos este é, pois, o ambiente propício à proliferação dos “desvios” que assinalámos nos artigos dos dias 11, 21 e 30 de janeiro, ao criar nos infratores uma sensação de impunidade: e assim se continua a beneficiar os trabalhadores “amigos e conhecidos” (que progridem mais rapidamente na carreira e com isso obtêm vantagens salariais que, numa avaliação justa, seriam imerecidas) em detrimento daqueles cujo mérito sendo evidente é, ostensivamente, não reconhecido, com prejuízo remuneratório.

Carlos Vares (2019) no blogue Gnose. Cidadania Ativa, a propósito do descontentamento que o SIADAP gera junto dos trabalhadores da administração pública, escreveu:

“Na avaliação dos trabalhadores e dirigentes, são definidos objectivos confidenciais entre o Avaliador e o Avaliado, normalmente, nenhum funcionário, mesmo trabalhando na mesma equipa e organização, conhece os objectivos (e grau de dificuldade) dos outros. A confidencialidade nos métodos de avaliação cria suspeição sobre o ‘benefício’ a alguns trabalhadores em detrimento de outros. Imagine que se entrega a um Técnico Superior o difícil objectivo de conceber um projecto de execução complexa e a outro, o simples preenchimento de uma tabela Excel. Como distinguir pela nota, a dificuldade, a aptidão e os conhecimentos colocados na execução do trabalho? No entanto, o trabalho mais fácil pode sair imaculado e o outro talvez não. (…)

Embora descontentes, a maioria dos funcionários públicos não exercem o seu direito de reclamação, por medo de serem depois lesados pelo Avaliador. Em casos mais graves, são até aconselhados pelos próprios Avaliadores a não reclamar, com promessas de justiça na próxima avaliação. É caricata a bola de neve da injustiça.”

Em conclusão:

Este ambiente de secretismo do SIADAP que alguns dirigentes, na defesa de interesses pouco claros, levam ao exagero incumprindo até as regras de publicitação que o próprio sistema impõe (comportamentos que contrariam o princípio da transparência a que todos os organismos da administração pública devem obedecer), na nossa opinião, é um incentivo ao tráfico de influências e abuso de poder, duas práticas que configuram crimes enquadráveis na designação genérica de corrupção.

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