quarta-feira, 28 de outubro de 2020

GOVERNANÇA E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO


REFLEXÕES PARA UMA GOVERNANÇA TERRITORIAL EFICIENTE, JUSTA E DEMOCRÁTICA

João Ferrão, nascido em 1952, é geógrafo e investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenador do Grupo de Investigação “Ambiente, Território e Sociedade” e do Conselho dos Observatórios do ICS-UL. Este artigo encontra-se publicado na revista Prospectiva e Planeamento (vol. 17, 2010).

O tema central deste artigo, a governança, é um conceito de amplitude multidisciplinar e alcance polisistémico difícil de definir pela natureza do conteúdo das múltiplas dimensões que encerra, da política à economia, passando pela participação cidadã e o envolvimento social e comunitário (Mateus, 2016). Ainda assim, João Ferrão fá-lo com mestria, de forma clara e objetiva, evidenciando as principais questões sobre as quais importa refletir.

Para o efeito, João Ferrão baliza a sua reflexão (necessariamente breve, mas muito eficaz na mensagem que transmite ao leitor) em dois campos de análise que importa destacar:

1)    A emergência da questão “governança”;

2)    Ordenamento do território e governança territorial.

Embora habitualmente preocupado com o impacto territorial diferenciado das políticas públicas e com as questões da escala espacial da respetiva operacionalização, neste artigo João Ferrão centra-
-se mais na problemática do papel do Estado enquanto governo da nação e na necessidade da sua reestruturação.

Para terminar com um terceiro capítulo – “Algumas questões para debate” – onde tenta demonstrar que existe uma interpretação teleológica que se sobrepõe à forma demasiado linear como as questões da territorialidade das políticas públicas têm vindo a ser tratadas, emergindo dessa constatação a evidente necessidade de haver uma nova “cultura de território” (Ferrão, 2014), uma ideia que o próprio desenvolve de forma mais estruturada uns naos mais tarde.

Indo à origem da utilização do termo governança, feito o enquadramento histórico, João Ferrão foca-se na sua aplicabilidade concreta e na forma como a necessidade de reforçar politicamente certas identidades regionais a nível internacional acaba por levar, também, a que se repense a organização administrativa do território.

No primeiro capítulo, o autor aborda a governança em quatro prismas que considera pertinentes para a compreensão do fenómeno e através dos quais nos leva a refletir sobre a importância da governação multinível e o aprofundamento da democracia, sem deixar de elencar alguns dos aspetos que considera negativos:

a)    Reforma administrativa do Estado;

b)    Reformulação do papel do Estado;

c)    Democracia participativa e deliberativa;

d)    Europeização dos processos de decisão.

João Ferrão, tal como Gil & Pereira (2017), entende a governança como um modelo complexo de relações de parceria entre instituições públicas e privadas, incluindo organizações não governamentais, instituições de solidariedade social, associações formais diversificadas e até grupos informais da comunidade onde a intervenção cidadã tem um importante papel a desempenhar, opinião que também partilhamos.

Por outro lado, a ligação entre a gestão do território e a governança social, uma relação de fatores interdependentes que Cansado, Tavares & Dallabrida (2013) também exploram, surge neste contexto como consequência direta do aumento das atribuições e competências das autarquias locais e apresenta-se como uma forma de legitimação dos poderes públicos num novo patamar de responsabilização territorial que aposta num Estado mais interventivo e executor.

Numa análise integrada entre sociedade civil e órgãos político-administrativos, com enfoque especial nos de cariz deliberativo, João Ferrão crê que “o aprofundamento da democracia pressupõe um maior recurso a soluções participativas” (Ferrão, 2010, p. 131), conclusão que partilhamos na íntegra até porque acreditamos que a partilha colaborativa permanente é fundamental à boa governação do território (Dallabrida, 2015).

João Ferrão considera que as práticas ativas de intervenção cívica visando a fiscalização da atuação dos decisores executivos (colegiais ou individuais) são a garantia para atingir o equilíbrio entre os múltiplos interesses que intervêm na gestão do território.

Concordando com o autor não podemos, contudo, deixar de referir que para o êxito dessa solução integracionista é imprescindível que as estruturas de governança participada substituam os pré-
-requisitos habituais por formas de organização de “geometria variável, abertas aos atores que as desejem integrar em tempos distintos, e apoiar-se em modelos colaborativos quer para dirimir tensões e conflitos latentes ou expressos na disputa do território, quer para congregar iniciativas e esforços na construção de soluções coletivas; as estruturas devem ser permanentes, ancoradas num território” (Pereira, 2013, p. 52).

A propósito lembramos João Amaral (2002, pp. 47 - 49) para quem a crise da democracia representativa era resultado do “fosso que progressivamente se vai abrindo entre eleitos e eleitores” e a única forma de “recuperar o sentido ético da política” seria “abrir espaço aos cidadãos para a partilha do exercício do poder.”

De facto, a participação dos eleitores não se pode esgotar no ato eleitoral. Por isso, a nível local, por exemplo, o mandato que conferimos, através do nosso voto, aos que irão integrar os órgãos autárquicos executivos e deliberativos municipais e/ou de freguesia, para em nosso nome tomarem as deliberações relativas à comunidade e as executarem, deve ser objeto de apreciação contínua e não apenas julgada de quatro em quatro anos.

A democracia participativa pressupõe uma população consciente dos seus deveres cívicos e que desempenha um papel ativo na vida política. Mas para atingir esse fim, precisamos de reforçar o “espírito de cidadania” e promover uma “cultura de participação democrática”.

Igualmente urgente é que os próprios membros dos órgãos colegiais saibam ser firmes na defesa dos seus direitos já que alguns são amiúde frequentemente desprezados, como seja o direito à informação e, sobretudo, o direito de agendamento.

Tal como intervir nos debates durante as reuniões é um direito das e dos eleitos, mas, principalmente, um seu dever para com a comunidade. Entender as razões que levam às opções de voto de cada um é indispensável para que possamos avaliar a qualidade do seu trabalho. Passar reuniões consecutivas sem nada dizer, ou votar sem fundamentar a opção escolhida (seja a favor, contra ou abstenção) é um comportamento desprestigiante.

Um princípio fundamental de um Estado de Direito é a responsabilização dos eleitos perante aqueles que os elegeram. A participação ativa da população nas deliberações que, em seu nome, são assumidas pelos órgãos autárquicos, deve ser considerada não uma ingerência, mas uma necessidade sobre a qual assenta a própria ideia de Democracia.

Por isso, consideramos que é urgente assegurar o carácter público de todos os processos de decisão. Assim como defender a existência de uma “política pública de informação” que consagre o princípio do dever de informar de forma acessível, com integral respeito pelos princípios da objetividade e imparcialidade deve ser uma prioridade se queremos envolver, como João Ferrão defende, os diversos agentes que intervêm no procedimento

Órgãos deliberativos interventivos, com membros conscientes das suas obrigações, ativos e atentos à gestão autárquica do município ou freguesia, que não se limitem a fazer eco das “orientações” vindas dos órgãos executivos e o “uso de metodologias mais descentralizadas de mobilização, diálogo e concertação de interesses e decisão”, como refere João Ferrão são, de facto, a única forma de “garantir a adequada representatividade da diversidade e complexidade que caraterizam as sociedades de hoje, complementando os mecanismos de decisão próprios da democracia representativa” (p. 132).

Correndo o risco de, dez anos passados, a realidade ser bem diferente, a dimensão europeia abordada por João Ferrão segue as conclusões do Livro Branco do Comité das Regiões (2009) e a tipificação de padrões de governança utilizados por Knill & Lenschow (2005) para chegar à política de coesão territorial e às diferentes posições sobre o papel do Estado: desregulamentadora (neoliberal do ponto de vista económico), diversificadora (civilista ou pós-moderna) e de estratégia colaborativa (neo-moderna).

E da abordagem crítica ao modelo de governança multi-escalar europeu, que João Ferrão considera ter um elevado grau de complexidade ao nível dos processos de negociação, chegamos ao pensamento de Piketty (2016, pp. 308-311) e que é, também, a nossa opinião: a necessidade de reformulação do projeto europeu de forma a permitir “sair da lógica intergovernamental e dos conciliábulos entre chefes de estado” pois estes “não são um método sustentável de governação”.

Até porque, como Soromenho-Marques (2016, p. 283) afirma, o princípio da soberania popular “reside no povo, ou nação (como comunidade que transforma um povo num sujeito histórico e político)”. Mas importa aqui fazer uma distinção entre conceitos: o “povo (conjunto organizado de cidadãos), que não se confunde com a multidão (conjunto caótico de indivíduos), é a instância genética de toda a ordem política. É nele que se concentram as forças demiúrgicas da construção, reconstrução e reforma dos regimes políticos.”

Ao nível do ordenamento do território, a questão da governança surge como o instrumento ideal para influenciar e direcionar a implementação das políticas públicas com efeitos territoriais (Marques & Alves, 2010).

No que se refere à avaliação do impacto das medidas que têm vindo a ser adotadas, João Ferrão apresenta-nos uma útil listagem de aspetos positivos e negativos, dos quais salientamos no primeiro caso a “obtenção de economias de escala através da mobilização de recursos e competências que se complementam entre si” e no segundo “a natureza oportunista de algumas parcerias e estruturas de rede” (Ferrão, 2010, p. 135).

  • Sobreposição de estratégias e de meios que, aliada à insuficiente segregação funcional, e que levam à duplicação de apoios, à sobrecarga de tarefas e à redundância operacional;
  • Insuficiente valorização dos parâmetros de contexto e enquadramento inadequado dos parceiros e que potenciam conflitos que impedem a colaboração;
  • Confusão entre plataformas de negociação institucional com plataformas colaborativas de cooperação e capacitação, uma situação amiúde geradora de entropias que colocam obstáculos no prosseguimento dos objetivos inicialmente preconizados.

Na nossa opinião, este é um artigo que contém as pistas indispensáveis para a reflexão que importa fazer sobre a relação entre governança e ordenamento do território, mas também sobre a problemática da “educação para a cidadania” referida por Mota (2005) que explora as potencialidades da internet como instrumento privilegiado para os cidadãos intervirem politicamente, introduzindo os conceitos de ciberdemocracia e ciberpoder.

Através da sua leitura atenta podemos encontrar os elementos que importa considerar para a elaboração de “centros de racionalidade de políticas públicas” nos quais se “realize a convergência e a concertação das opções de política regional no médio e longo prazo”, uma sugestão de Covas & Covas (2015, p. 43) que partilhamos.

João Ferrão consegue, numa linguagem simples, mas precisa e rigorosa do ponto de vista científico, apresentar-nos a problemática da governança territorial, indo do enquadramento europeu à perspetiva nacional, decompondo o conceito nas suas componentes endógenas e explicando as interferências exógenas.

Um texto que se recomenda, sobretudo pela forma concisa como consegue expor as principais questões em análise e como induz o leitor a explorar outros caminhos na busca de respostas para os temas que a seguir resumimos:

Governação e governança;

Escala geográfica de operacionalização do poder;

Participação da sociedade no processo de decisão (parcerias);

Cidadania de intervenção política ativa;

Contextualização comunitária das políticas públicas.


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Referências bibliográficas:

 

Amaral, J. (2002). Rumo à mudança. Vila Nova de Famalicão: Campo da Comunicação.

Cansado, A. C., Tavares, B. & Dallabrida, V. R. (2013). Gestão Social e Governança Territorial: interseções e especificidades teórico-práticas. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 9 (3), 313-353. Disponível em https://www.rbgdr.net/revista/index.php/rbgdr/article/view/1136

Covas, A. & Covas, M. M. (2015). Multiterrritorialidades. Temas e problemas de governança e desenvolvimento territoriais. Lisboa: Edições Colibri.

Dallabrida, V. R. (2015). Governança territorial: do debate teórico à avaliação da sua prática. Análise social, 215, l (2.º), 304-328.

Ferrão, J. (2014). O ordenamento do território como política pública (2.ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkien.

Gil, D. & Pereira, M. (2017). Modelos baseados em agentes e governança territorial: Conceptualização de um modelo para os territórios do Côa e Douro. In XI Congresso da Geografia Portuguesa, Porto, 9-11 novembro 2017 (pp. 307-310). Associação portuguesa de Geógrafos. Disponível em http://hdl.handle.net/10362/41523

Mateus, J. C. R. (2016). Governança, in Fernandes, J. A., Trigal, L. L. & Sposito, E. S. (Org.), Dicionário de Geografia Aplicada. Terminologia da análise, do planeamento e da gestão do território (pp. 237-
-239). Porto: Porto Editora.

Marques, T. S. & Alves, P. (2010). O desafio da governança policêntrica. Prospectiva e Planeamento, 17, pp. 141-164. Disponível em https://hdl.handle.net/10216/56621

Mota, A. (2005). Governo local. Participação e cidadania. Lisboa: Veja.

Pereira, M. (2013). Da governança à governança territorial colaborativa. Uma agenda para o futuro do desenvolvimento regional. DRd – Desenvolvimento Regional em debate, 3, 2, pp. 52-65. Disponível em https://doi.org/10.24302/drd.v3i2.493

Piketty, P. (2016). Podemos salvar a Europa? Queluz de Baixo: Marcador.

Soromenho-Marques, V. (2016). Portugal na queda da Europa. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores.

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