domingo, 19 de agosto de 2018

Por que o princípio da “administração aberta” incomoda tanto?




“Um eleitorado instruído é um eleitorado poderoso. Uma cidadania esclarecida é a maior defensora da liberdade.” (Kofi Annan)


Quando estão na oposição gritam por ela, exigem-na a todo o instante, usam-na amiúde em discursos inflamados nos órgãos colegiais autárquicos e são céleres a acusar os executivos de falta dela, como desculpa para a sua própria inépcia.
Em campanha eleitoral transformam-na em palavra de ordem nos comícios, garantem ser o seu guardião na prática quotidiana, inscrevem-na nos diferentes programas partidários, exigem o seu cumprimento aos adversários políticos.
Todavia, chegam ao poder e esquecem-se rapidamente do que antes defendiam com tanto empenho e adotam as mesmas práticas que tanto criticavam. Tudo serve de desculpa para não cumprirem o prometido e consideram o seu comportamento atual desculpável devido à herança que receberam (e cuja verdadeira dimensão desconheciam), ao sistema informático obsoleto, à burocracia exagerada dos procedimentos administrativos, à falta de pessoal especializado e, principalmente, à escassez de recursos financeiros indispensáveis para ultrapassar os obstáculos técnicos.
Porque, afinal, se consideram melhores que os anteriores (a quem requeriam aquilo que agora eles próprios não são capaz de cumprir), pretendem que a sua palavra seja prova suficiente para atestar a veracidade das informações que prestam ao público e sentem-se ofendidos quando alguém os confronta com a necessidade de mostrarem as evidências documentais dos atos praticados.
Não respondem aos requerimentos enviados por via formal, mas quando são questionados publicamente acerca dessa omissão e alguém ousa pedir-lhes que demonstrem, com documentos, aquilo que afirmam, são céleres a tentar menosprezar a atitude de quem pergunta como se as questões apresentadas fossem menores face à enormidade de problemas concretos que há para resolver no quotidiano institucional. É a apologia do "importa fazer, não interessa como" (ou seja, "os meios justificam os fins").
Vem esta conversa a propósito da discussão no “Grupo de Amigos da Charneca de Caparica e Sobreda”, da rede social Facebook, sobre dois desafios concretos por mim lá colocados.
Aos membros do executivo da União de Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda que integram este grupo, dirijo duas perguntas: Para quando a disponibilização online dos relatórios trimestrais apresentados na AF após o último que se encontra publicado (2.º trimestre de 2017)? Em nome da transparência e em cumprimento do princípio da administração aberta, é intenção (ou não) da autarquia vir a disponibilizar (e para quando) a informação relativa aos contratos de prestação de serviços celebrados durante o atual mandato?”
Aos membros do órgão deliberativo da União de Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda que integram este grupo dirijo duas perguntas: Consideram suficiente que a AF disponibilize apenas os editais com as ordens de trabalho das reuniões? Não acham que, a bem da transparência e do princípio da administração aberta, seria útil que a população pudesse aceder online às atas das sessões (ou, no mínimo, às minutas das mesmas), assim como aos documentos apresentados em cada reunião?”
Perguntas que levaram à elaboração de uma sondagem que, no prazo de 24h, foi uma das mais participadas:
“A bem da democracia participativa e do princípio da administração aberta, seria útil que os fregueses pudessem aceder online às atas das sessões (ou, no mínimo, às minutas das mesmas) assim como aos documentos apresentados em cada Assembleia de Freguesia?”
Mesmo com uma amostra muito pequena face ao universo total de membros (86 em 7.513, domingo às 12:30H), não deixa de ser muito significativo o facto de as respostas obtidas serem: “muito útil” – 99%; “nada útil” – 1% e “pouco útil” – 0%, apesar de nos comentários ter havido um "médio" e duas pessoas que consideraram as hipóteses colocadas como sendo "não válidas" e, por isso, comentaram mas não votaram.
Sendo a liberdade de expressão um valor que muito preso, não posso deixar de ficar satisfeita com o debate em torno das questões da “administração aberta” e da transparência na gestão autárquica.
Mas, por outro lado, lamento que exista ainda tanta incompreensão em torno do conteúdo de ambos os conceitos e, sobretudo, custa-me a aceitar que quem defende a Democracia e o Estado de Direito sinta como afronta a exigência cidadã do cumprimento daquele que é um dever legal da administração pública do presente: disponibilizar online, num prazo razoável, a informação sobre os procedimentos administrativos praticados.
E, pior ainda (porque me choca e até indigna), é verificar a relutância que certos políticos e simpatizantes partidários, outrora acérrimos defensores da “administração aberta” quando era a CDU que estava no poder e a acusavam (e muito bem), tal como eu própria o fiz por diversas vezes neste mesmo espaço, de ser contra a transparência, têm agora em esclarecer de forma clara e objetiva as dúvidas colocadas pelos munícipes, recusando-se mesmo a fazê-lo de forma ostensiva recorrendo a argumentos populistas e desprovidos de lógica (isto para não os classificar de falaciosos pois o termo tem uma conotação demasiado negativa e poderia ferir suscetibilidades).
Como exemplo de desculpas incoerentes temos os casos relacionados com os contratos de prestação e serviços em regime de tarefa ou avença, que além de serem de registo obrigatório na plataforma da contratação pública devem ser publicitados na página web dos serviços (nos termos da LADA, do CCP e da LGTFP):
Na Charneca de Caparica e Sobreda – afirmam ter cumprido todas as regras legais, mas recusam-se a disponibilizar online a informação sobre os contratos celebrados por ajuste direto simplificado até 5.000€ (os quais, por opção discricionária da entidade adjudicante legalmente permitida, podem não ser visíveis na consulta pública efetuada através da Base.gov). Argumentam que: o site da junta está obsoleto e os documentos estão acessíveis nas instalações da autarquia. Todavia, a página web é atualizada com regularidade e publicita outros documentos da atividade autárquica permitindo mesmo o respetivo download. Se nada têm a esconder, porque não respondem de forma clara e objetiva às perguntas que sobre esta matéria lhes são colocadas? Porque preferem alimentar as dúvidas e deixar na incerteza quem as formula? O que os impede de publicar aquela documentação em concreto se já não existe qualquer problema na divulgação de outro tipo de documentos (como editais, por exemplo)?
Ainda em relação àquela freguesia, temos a questão da publicitação dos relatórios trimestrais sobre a atividade da Junta. Se publicaram os anteriores (até ao 2.º trimestre de 2017), e depois desse último já outros foram apresentados na Assembleia de Freguesia, não se percebe que sejam razões de alegado obsoletismo do site que impeçam a sua divulgação regular.
Na Câmara Municipal de Almada – apesar de terem colocado uma ligação direta à Base.gov onde alegadamente se encontram registados, e com acesso público, todos os contratos de prestação de serviços celebrados por ajuste direto pelo município (incluindo os ajustes diretos simplificados de valor inferior a 5.000€), não se compreende a dificuldade em apresentar a lista dos avençados e tarefeiros cumprindo o que a lei estabelece.
Até porque a renitência em disponibilizar esta informação de forma cronológica e ordenada (e não através de uma ligação que remete para uma “conta corrente” que contém milhares de registos), deixa a pairar a acusação de que além dos contratos a que se acede através da pesquisa pública poderão existir muitos outros que se desconhecem por apenas serem acessíveis através do acesso reservado (ou seja, que são invisíveis ao público em geral).

“À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

A informação só será útil se for transformada em conhecimento. Aí reside (no conhecimento) o verdadeiro poder. E é esse poder que incomoda quem julga que por estar em lugar executivo tem a veleidade de pensar que a sua palavra tem um valor intrínseco superior à dos restantes membros da comunidade derivado do cargo que ocupa.
Na Administração Pública, atentos aos princípios legais e éticos a que devem obedecer todos os agentes que nela exercem funções, não basta dizer que se cumpre a lei… é imperativo mostrar evidências de que assim se fez. Caso contrário é permitir que a dúvida legítima se instale e a desconfiança cresça.
Assim como menosprezar o interesse de algumas pessoas pelo cumprimento das regras procedimentais dando a entender que são preocupações menores (mesquinhices burocráticas inócuas) face aos múltiplos problemas concretos que há para resolver e que a população tem de enfrentar no quotidiano, é uma tremenda falta de sensibilidade para as questões que podem estar na origem do flagelo da corrupção.
As juventudes partidárias parecem agora muito preocupadas com a problemática da corrupção (veja-se o artigo do DN de 12-08-2018), no entanto atingida a maturidade partidária e, sobretudo, quando sentados na cadeira do poder, facilmente esquecem estas preocupações e num instante tratam de encontram mecanismos para evitar a transparência (tornando-a inacessível por demasiado morosa, complexa e onerosa) ou desculpas para justificar a não aplicação dos princípios da “administração aberta” remetendo para as calendas o seu cumprimento.

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