REFLEXÕES PARA UMA GOVERNANÇA TERRITORIAL EFICIENTE, JUSTA E DEMOCRÁTICA
João Ferrão, nascido em 1952, é geógrafo e investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenador do Grupo de Investigação “Ambiente, Território e Sociedade” e do Conselho dos Observatórios do ICS-UL. Este artigo encontra-se publicado na revista Prospectiva e Planeamento (vol. 17, 2010).
O tema central deste artigo,
a governança, é um conceito de amplitude multidisciplinar e alcance
polisistémico difícil de definir pela natureza do conteúdo das múltiplas
dimensões que encerra, da política à economia, passando pela participação
cidadã e o envolvimento social e comunitário (Mateus, 2016). Ainda assim, João
Ferrão fá-lo com mestria, de forma clara e objetiva, evidenciando as principais
questões sobre as quais importa refletir.
Para o efeito, João Ferrão
baliza a sua reflexão (necessariamente breve, mas muito eficaz na mensagem que
transmite ao leitor) em dois campos de análise que importa destacar:
1)
A emergência da questão
“governança”;
2)
Ordenamento do território e
governança territorial.
Embora habitualmente
preocupado com o impacto territorial diferenciado das políticas públicas e com
as questões da escala espacial da respetiva operacionalização, neste artigo
João Ferrão centra-
-se mais na problemática do papel do Estado enquanto governo da nação e na
necessidade da sua reestruturação.
Para terminar com um terceiro
capítulo – “Algumas questões para debate” – onde tenta demonstrar que existe
uma interpretação teleológica que se sobrepõe à forma demasiado linear como as
questões da territorialidade das políticas públicas têm vindo a ser tratadas,
emergindo dessa constatação a evidente necessidade de haver uma nova “cultura
de território” (Ferrão, 2014), uma ideia que o próprio desenvolve de forma mais
estruturada uns naos mais tarde.
Indo à origem da utilização do
termo governança, feito o enquadramento histórico, João Ferrão foca-se na sua
aplicabilidade concreta e na forma como a necessidade de reforçar politicamente
certas identidades regionais a nível internacional acaba por levar, também, a
que se repense a organização administrativa do território.
No primeiro capítulo, o autor
aborda a governança em quatro prismas que considera pertinentes para a
compreensão do fenómeno e através dos quais nos leva a refletir sobre a
importância da governação multinível e o aprofundamento da democracia, sem
deixar de elencar alguns dos aspetos que considera negativos:
a)
Reforma administrativa do
Estado;
b)
Reformulação do papel do
Estado;
c)
Democracia participativa e
deliberativa;
d)
Europeização dos processos de
decisão.
João Ferrão, tal como Gil
& Pereira (2017), entende a governança como um modelo complexo de relações de
parceria entre instituições públicas e privadas, incluindo organizações não
governamentais, instituições de solidariedade social, associações formais
diversificadas e até grupos informais da comunidade onde a intervenção cidadã
tem um importante papel a desempenhar, opinião que também partilhamos.
Por outro lado, a ligação
entre a gestão do território e a governança social, uma relação de fatores
interdependentes que Cansado, Tavares & Dallabrida (2013) também exploram, surge
neste contexto como consequência direta do aumento das atribuições e competências
das autarquias locais e apresenta-se como uma forma de legitimação dos poderes
públicos num novo patamar de responsabilização territorial que aposta num
Estado mais interventivo e executor.
Numa análise integrada entre
sociedade civil e órgãos político-administrativos, com enfoque especial nos de
cariz deliberativo, João Ferrão crê que “o aprofundamento da democracia pressupõe
um maior recurso a soluções participativas” (Ferrão, 2010, p. 131), conclusão
que partilhamos na íntegra até porque acreditamos que a partilha colaborativa permanente
é fundamental à boa governação do território (Dallabrida, 2015).
João Ferrão considera que as
práticas ativas de intervenção cívica visando a fiscalização da atuação dos
decisores executivos (colegiais ou individuais) são a garantia para atingir o
equilíbrio entre os múltiplos interesses que intervêm na gestão do território.
Concordando com o autor não
podemos, contudo, deixar de referir que para o êxito dessa solução
integracionista é imprescindível que as estruturas de governança participada substituam
os pré-
-requisitos habituais por formas de organização de “geometria variável, abertas
aos atores que as desejem integrar em tempos distintos, e apoiar-se em modelos
colaborativos quer para dirimir tensões e conflitos latentes ou expressos na
disputa do território, quer para congregar iniciativas e esforços na construção
de soluções coletivas; as estruturas devem ser permanentes, ancoradas num
território” (Pereira, 2013, p. 52).
A propósito lembramos João
Amaral (2002, pp. 47 - 49) para quem a crise da democracia representativa era
resultado do “fosso que progressivamente se vai abrindo entre eleitos e
eleitores” e a única forma de “recuperar o sentido ético da política” seria
“abrir espaço aos cidadãos para a partilha do exercício do poder.”
De facto, a participação dos
eleitores não se pode esgotar no ato eleitoral. Por isso, a nível local, por
exemplo, o mandato que conferimos, através do nosso voto, aos que irão integrar
os órgãos autárquicos executivos e deliberativos municipais e/ou de freguesia,
para em nosso nome tomarem as deliberações relativas à comunidade e as
executarem, deve ser objeto de apreciação contínua e não apenas julgada de
quatro em quatro anos.
A democracia participativa pressupõe
uma população consciente dos seus deveres cívicos e que desempenha um papel
ativo na vida política. Mas para atingir esse fim, precisamos de reforçar o
“espírito de cidadania” e promover uma “cultura de participação democrática”.
Igualmente urgente é que os próprios
membros dos órgãos colegiais saibam ser firmes na defesa dos seus direitos já
que alguns são amiúde frequentemente desprezados, como seja o direito à
informação e, sobretudo, o direito de agendamento.
Tal como intervir nos debates
durante as reuniões é um direito das e dos eleitos, mas, principalmente, um seu
dever para com a comunidade. Entender as razões que levam às opções de voto de
cada um é indispensável para que possamos avaliar a qualidade do seu trabalho.
Passar reuniões consecutivas sem nada dizer, ou votar sem fundamentar a opção escolhida
(seja a favor, contra ou abstenção) é um comportamento desprestigiante.
Um princípio fundamental de
um Estado de Direito é a responsabilização dos eleitos perante aqueles que os
elegeram. A participação ativa da população nas deliberações que, em seu nome,
são assumidas pelos órgãos autárquicos, deve ser considerada não uma ingerência,
mas uma necessidade sobre a qual assenta a própria ideia de Democracia.
Por isso, consideramos que é
urgente assegurar o carácter público de todos os processos de decisão. Assim
como defender a existência de uma “política pública de informação” que consagre
o princípio do dever de informar de forma acessível, com integral respeito
pelos princípios da objetividade e imparcialidade deve ser uma prioridade se
queremos envolver, como João Ferrão defende, os diversos agentes que intervêm
no procedimento
Órgãos deliberativos
interventivos, com membros conscientes das suas obrigações, ativos e atentos à
gestão autárquica do município ou freguesia, que não se limitem a fazer eco das
“orientações” vindas dos órgãos executivos e o “uso de metodologias mais
descentralizadas de mobilização, diálogo e concertação de interesses e
decisão”, como refere João Ferrão são, de facto, a única forma de “garantir a
adequada representatividade da diversidade e complexidade que caraterizam as
sociedades de hoje, complementando os mecanismos de decisão próprios da
democracia representativa” (p. 132).
Correndo o risco de, dez anos
passados, a realidade ser bem diferente, a dimensão europeia abordada por João
Ferrão segue as conclusões do Livro Branco do Comité das Regiões (2009) e a
tipificação de padrões de governança utilizados por Knill & Lenschow (2005)
para chegar à política de coesão territorial e às diferentes posições sobre o
papel do Estado: desregulamentadora (neoliberal do ponto de vista económico),
diversificadora (civilista ou pós-moderna) e de estratégia colaborativa (neo-moderna).
E da abordagem crítica ao
modelo de governança multi-escalar europeu, que João Ferrão considera ter um
elevado grau de complexidade ao nível dos processos de negociação, chegamos ao
pensamento de Piketty (2016, pp. 308-311) e que é, também, a nossa opinião: a
necessidade de reformulação do projeto europeu de forma a permitir “sair da
lógica intergovernamental e dos conciliábulos entre chefes de estado” pois
estes “não são um método sustentável de governação”.
Até porque, como
Soromenho-Marques (2016, p. 283) afirma, o princípio da soberania popular
“reside no povo, ou nação (como comunidade que transforma um povo num sujeito
histórico e político)”. Mas importa aqui fazer uma distinção entre conceitos: o
“povo (conjunto organizado de cidadãos), que não se confunde com a multidão
(conjunto caótico de indivíduos), é a instância genética de toda a ordem
política. É nele que se concentram as forças demiúrgicas da construção,
reconstrução e reforma dos regimes políticos.”
Ao nível do ordenamento do
território, a questão da governança surge como o instrumento ideal para
influenciar e direcionar a implementação das políticas públicas com efeitos
territoriais (Marques & Alves, 2010).
No que se refere à avaliação do impacto das medidas que têm vindo a ser adotadas, João Ferrão apresenta-nos uma útil listagem de aspetos positivos e negativos, dos quais salientamos no primeiro caso a “obtenção de economias de escala através da mobilização de recursos e competências que se complementam entre si” e no segundo “a natureza oportunista de algumas parcerias e estruturas de rede” (Ferrão, 2010, p. 135).
- Sobreposição de estratégias e de meios que, aliada à insuficiente segregação funcional, e que levam à duplicação de apoios, à sobrecarga de tarefas e à redundância operacional;
- Insuficiente valorização dos parâmetros de contexto e enquadramento inadequado dos parceiros e que potenciam conflitos que impedem a colaboração;
- Confusão entre plataformas de negociação institucional com plataformas colaborativas de cooperação e capacitação, uma situação amiúde geradora de entropias que colocam obstáculos no prosseguimento dos objetivos inicialmente preconizados.
Na nossa opinião, este é um
artigo que contém as pistas indispensáveis para a reflexão que importa fazer sobre
a relação entre governança e ordenamento do território, mas também sobre a
problemática da “educação para a cidadania” referida por Mota (2005) que
explora as potencialidades da internet como instrumento privilegiado para os
cidadãos intervirem politicamente, introduzindo os conceitos de ciberdemocracia
e ciberpoder.
Através da sua leitura atenta
podemos encontrar os elementos que importa considerar para a elaboração de
“centros de racionalidade de políticas públicas” nos quais se “realize a
convergência e a concertação das opções de política regional no médio e longo
prazo”, uma sugestão de Covas & Covas (2015, p. 43) que partilhamos.
João Ferrão consegue, numa
linguagem simples, mas precisa e rigorosa do ponto de vista científico, apresentar-nos
a problemática da governança territorial, indo do enquadramento europeu à
perspetiva nacional, decompondo o conceito nas suas componentes endógenas e
explicando as interferências exógenas.
Um texto que se recomenda, sobretudo pela forma concisa como consegue expor as principais questões em análise e como induz o leitor a explorar outros caminhos na busca de respostas para os temas que a seguir resumimos:
Governação e governança;
Escala geográfica de operacionalização do poder;
Participação da sociedade no processo de decisão (parcerias);
Cidadania de intervenção política ativa;
Contextualização comunitária das políticas públicas.
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Referências bibliográficas:
Amaral, J. (2002). Rumo à
mudança. Vila Nova de Famalicão: Campo da Comunicação.
Cansado, A. C., Tavares, B.
& Dallabrida, V. R. (2013). Gestão Social e Governança Territorial: interseções
e especificidades teórico-práticas. Revista
Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 9 (3), 313-353. Disponível
em https://www.rbgdr.net/revista/index.php/rbgdr/article/view/1136
Covas, A. & Covas, M. M.
(2015). Multiterrritorialidades. Temas e
problemas de governança e desenvolvimento territoriais. Lisboa: Edições
Colibri.
Dallabrida, V. R. (2015).
Governança territorial: do debate teórico à avaliação da sua prática. Análise social, 215, l (2.º), 304-328.
Ferrão, J. (2014). O ordenamento do território como política
pública (2.ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkien.
Gil, D. & Pereira, M.
(2017). Modelos baseados em agentes e governança territorial: Conceptualização de
um modelo para os territórios do Côa e Douro. In XI Congresso da Geografia Portuguesa, Porto, 9-11 novembro 2017
(pp. 307-310). Associação portuguesa de Geógrafos. Disponível em http://hdl.handle.net/10362/41523
Mateus, J. C. R. (2016). Governança,
in Fernandes, J. A., Trigal, L. L. & Sposito, E. S. (Org.), Dicionário de Geografia Aplicada. Terminologia da análise, do planeamento e da
gestão do território (pp. 237-
-239). Porto: Porto Editora.
Marques, T. S. & Alves,
P. (2010). O desafio da governança policêntrica. Prospectiva e Planeamento, 17, pp. 141-164. Disponível em https://hdl.handle.net/10216/56621
Mota, A. (2005). Governo
local. Participação e cidadania. Lisboa: Veja.
Pereira, M. (2013). Da
governança à governança territorial colaborativa. Uma agenda para o futuro do
desenvolvimento regional. DRd –
Desenvolvimento Regional em debate, 3, 2, pp. 52-65. Disponível em https://doi.org/10.24302/drd.v3i2.493
Piketty, P. (2016). Podemos
salvar a Europa? Queluz de Baixo: Marcador.
Soromenho-Marques, V. (2016). Portugal na queda da Europa. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores.
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