Da autoria de Milton Santos (1926-2001),
reconhecido geógrafo brasileiro que em 1994 ganhou o prémio Vautrin Lud
(considerado o Nobel da geografia), o artigo em título encontra-se publicado na
revista Cadernos do IPPUR, periódico
académico do Instituto de Pesquisa e Planeamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ano XIII,
número 2, 1999).
O texto citado em epígrafe, leva-nos pelos
meandros do espaço e do tempo fazendo a ligação dessas variáveis com a questão
da identidade cultural do território habitado. Apesar de não ser um objetivo
fácil de explicar, Milton Santos consegue-o atingir com mestria.
O autor começa por expor algumas considerações sobre aquilo que designa por “evento” (a chave que, na sua ótica, une os conceitos de tempo e espaço), parte para a análise da “forma-conteúdo” (compreensão da racionalidade territorial) desse fenómeno, dirige-se ao “território usado” (onde escalpeliza a relação da sociedade com a natureza) e termina no “saber local” (uma espécie de palimpsesto cultural que resulta de práticas empíricas quotidianas).
A noção de tempo-espaço, que Milton Santos
aborda numa perspetiva filosófica, faz-nos recordar a noção de “espaço
compósito” que Carmo (2014) utiliza quando analisa as tensões entre mobilidade
e espacialidade como elementos que estruturam a pertença a um lugar.
Embora escrito a pensar no caso brasileiro, a
reflexão que Milton Santos faz aplica-se a qualquer país porque nos ajuda a
perceber a relevância de “olhar para as paisagens no que elas transportam do
passado para o futuro” com o objetivo de melhorar a nossa “capacidade de
conversar sobre o que vemos” (Santos, 2017, p. 80).
Neste artigo, o autor questiona a própria ideia
de sociedade e através de algumas perguntas certeiras leva-nos a rever noções
cujo alcance tínhamos como garantido: região, cidade, bairro e até sub-região.
Uma forma de percecionar o território que encontramos também em Pinheiro (2005)
quando se refere ao suburbium e ao
crescimento urbano com as temporalidades próprias de cada época.
A reflexão em torno do conceito de
solidariedade, na sua dimensão espacial, é trazida à colação pelo autor para
explicar a insuficiência da análise demasiado linear feita por aqueles que
designa de “territoriólogos” a quem considera faltar o húmus que permite ligar
a amálgama de acontecimentos que levam à “realização concreta, à produção
histórica e geográfica de eventos solidários” os quais, por sua vez, nos
conduzem à identificação dos limites de cada área, consoante as diferentes
escalas de intervenção política.
Uma ideia que nos parece afastada daquela que
Vale (2012) defende quando afirma que as unidades espaciais fechadas e
limitadas são conceitos cada vez mais ultrapassados pela realidade. Contudo,
assim não será se atendermos à essência do que Milton Santos nos pretende
transmitir ao falar sobre o “território usado” e da dialética entre sociedade e
natureza que leva ao processo de mudança num quadro global de múltiplas
influências económicas e sociais que deixam no território uma marca, mas não o
determinam.
Acerca do “saber local”, Milton Santos começa
por perguntar se a territorialidade é um atributo do território ou dos seus
ocupantes e desenvolve o capítulo tentando responder a essa questão, à qual
junta uma segunda sobre se o nosso quotidiano se passa no lugar onde nos
encontramos ou no território nacional.
Na busca dos elementos que compõem a identidade
local, pese embora a ambiguidade que o termo encerra e que Antunes (1985) tão
bem expressou aquando do estudo sobre emigração portuguesa e a necessidade de
pertença ao local de origem, Milton Santos tece algumas considerações sobre o
tempo empírico, em oposição ao processo que designa por historização e
geografização, que considera como sendo a forma adequada de evitar
interpretações incoerentes de solidariedade territorial.
Uma forma diferente, quiçá um pouco complexa,
de nos levar a refletir sobre aquilo que nos identifica com um determinado
lugar e o que em nós resulta da definição da identidade nacional do país onde
nascemos, circunstância que exige do investigador um esforço suplementar de
distanciação e reflexão na descoberta dos elementos que integram a nossa
personalidade individual e os que são consequência da identificação coletiva
(Sobral, 2012).
Tal como Milton Santos, também Afonso (1994)
considera que o espaço encerra em si um simbolismo que nos permite fazer a
distinção entre o território como suporte geográfico e o lugar enquanto
dimensão de poder. Mas, esse imaginário identitário é, para o geógrafo
brasileiro, um “saber local urbano” porque, na sua ótica, “o campo é
extremamente vulnerável ao grande capital”, deixando transparecer a orientação
política que está na raiz do seu pensamento.
Segundo Milton Santos, é da amálgama entre
tradições, crenças, hábitos e costumes sociais, práticas individuais e
coletivas, em diversos domínios do conhecimento, que o saber local se renova e
novas técnicas surgem, o que se reflete não apenas nos aspetos imateriais da
cultura, mas também na transformação do território.
Mas
quais são, afinal, as componentes da “identidade local”? Não sendo uma resposta
fácil, julgamos, contudo, que se podem resumir a quatro tipo de fatores:
biogeográficos (influência do ambiente natural); etno-históricos (sucessão
evolutiva expressa na tradição); socioeconómicos (organização económica e
social) e ideológicos (enquadramento simbólico e espiritual da cultura), os
quais permitem identificar o ponto axial do desenvolvimento – a questão da
mudança, no espaço e no tempo, que Milton Santos refere.
Em
nossa opinião, e tendo como base os ensinamentos de Milton Santos e na mesma
perspetiva humanístico-interpretativa de Trilla (2004), consideramos que a
busca da identidade cultural de um local deve centrar-se na procura das
relações causais e nas explicações que nos permitam analisar e interpretar os
fenómenos observados numa abordagem etnográfica que junte aspetos históricos,
geográficos e imateriais.
Em conclusão, este não é um texto de
compreensão fácil, mas o facto de conter uma imensa profusão de pistas para uma
séria reflexão sobre as implicações da territorialidade de fenómenos como o da
solidariedade e o da identidade cultural, tornam-no de leitura obrigatória.
Referências bibliográficas:
Afonso, C. A. (1994). O poder do espaço: dominação simbólica, território e identidade nas
montanhas de Trás-os-Montes. (tese de doutoramento). Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/1574.
Antunes, M. L. M. (1985). Migrações, mobilidade
social e identidade cultural: factos e hipóteses sobre o caso português. Análise Social, XII (65 – 1.º), pp.
17-27.
Carmo, R. M. (2014). Sociologia dos territórios. Teorias, estruturas e deambulações.
Lisboa: Editora Mundos Sociais.
Pinheiro, M. (2005). O subúrbio entre o
arrabalde antigo e a metrópole: identidade e temporalidade – os territórios do
urbano. Ler História. Cidades e espaços
urbanos. 48, pp. 11-32.
Santos, H. P. (2017). Portugal: paisagem rural. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos
Santos.
Sobral, J. M. (2012). Portugal, Portugueses: uma identidade nacional. Lisboa: Fundação
Francisco Manuel dos Santos.
Trilla, J. (Coord) (2004). Animação
sociocultural. Teorias, programas e âmbitos. Lisboa: Instituto Piaget.
Vale, M. (2012). Conhecimento, inovação e território. Lisboa: Edições Colibri.
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