terça-feira, 27 de outubro de 2020

O território e o saber local

Da autoria de Milton Santos (1926-2001), reconhecido geógrafo brasileiro que em 1994 ganhou o prémio Vautrin Lud (considerado o Nobel da geografia), o artigo em título encontra-se publicado na revista Cadernos do IPPUR, periódico académico do Instituto de Pesquisa e Planeamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ano XIII, número 2, 1999).

O texto citado em epígrafe, leva-nos pelos meandros do espaço e do tempo fazendo a ligação dessas variáveis com a questão da identidade cultural do território habitado. Apesar de não ser um objetivo fácil de explicar, Milton Santos consegue-o atingir com mestria.

O autor começa por expor algumas considerações sobre aquilo que designa por “evento” (a chave que, na sua ótica, une os conceitos de tempo e espaço), parte para a análise da “forma-conteúdo” (compreensão da racionalidade territorial) desse fenómeno, dirige-se ao “território usado” (onde escalpeliza a relação da sociedade com a natureza) e termina no “saber local” (uma espécie de palimpsesto cultural que resulta de práticas empíricas quotidianas).

A noção de tempo-espaço, que Milton Santos aborda numa perspetiva filosófica, faz-nos recordar a noção de “espaço compósito” que Carmo (2014) utiliza quando analisa as tensões entre mobilidade e espacialidade como elementos que estruturam a pertença a um lugar.

Embora escrito a pensar no caso brasileiro, a reflexão que Milton Santos faz aplica-se a qualquer país porque nos ajuda a perceber a relevância de “olhar para as paisagens no que elas transportam do passado para o futuro” com o objetivo de melhorar a nossa “capacidade de conversar sobre o que vemos” (Santos, 2017, p. 80).

Neste artigo, o autor questiona a própria ideia de sociedade e através de algumas perguntas certeiras leva-nos a rever noções cujo alcance tínhamos como garantido: região, cidade, bairro e até sub-região. Uma forma de percecionar o território que encontramos também em Pinheiro (2005) quando se refere ao suburbium e ao crescimento urbano com as temporalidades próprias de cada época.

A reflexão em torno do conceito de solidariedade, na sua dimensão espacial, é trazida à colação pelo autor para explicar a insuficiência da análise demasiado linear feita por aqueles que designa de “territoriólogos” a quem considera faltar o húmus que permite ligar a amálgama de acontecimentos que levam à “realização concreta, à produção histórica e geográfica de eventos solidários” os quais, por sua vez, nos conduzem à identificação dos limites de cada área, consoante as diferentes escalas de intervenção política.

Uma ideia que nos parece afastada daquela que Vale (2012) defende quando afirma que as unidades espaciais fechadas e limitadas são conceitos cada vez mais ultrapassados pela realidade. Contudo, assim não será se atendermos à essência do que Milton Santos nos pretende transmitir ao falar sobre o “território usado” e da dialética entre sociedade e natureza que leva ao processo de mudança num quadro global de múltiplas influências económicas e sociais que deixam no território uma marca, mas não o determinam.

Acerca do “saber local”, Milton Santos começa por perguntar se a territorialidade é um atributo do território ou dos seus ocupantes e desenvolve o capítulo tentando responder a essa questão, à qual junta uma segunda sobre se o nosso quotidiano se passa no lugar onde nos encontramos ou no território nacional.

Na busca dos elementos que compõem a identidade local, pese embora a ambiguidade que o termo encerra e que Antunes (1985) tão bem expressou aquando do estudo sobre emigração portuguesa e a necessidade de pertença ao local de origem, Milton Santos tece algumas considerações sobre o tempo empírico, em oposição ao processo que designa por historização e geografização, que considera como sendo a forma adequada de evitar interpretações incoerentes de solidariedade territorial.

Uma forma diferente, quiçá um pouco complexa, de nos levar a refletir sobre aquilo que nos identifica com um determinado lugar e o que em nós resulta da definição da identidade nacional do país onde nascemos, circunstância que exige do investigador um esforço suplementar de distanciação e reflexão na descoberta dos elementos que integram a nossa personalidade individual e os que são consequência da identificação coletiva (Sobral, 2012).

Tal como Milton Santos, também Afonso (1994) considera que o espaço encerra em si um simbolismo que nos permite fazer a distinção entre o território como suporte geográfico e o lugar enquanto dimensão de poder. Mas, esse imaginário identitário é, para o geógrafo brasileiro, um “saber local urbano” porque, na sua ótica, “o campo é extremamente vulnerável ao grande capital”, deixando transparecer a orientação política que está na raiz do seu pensamento.

Segundo Milton Santos, é da amálgama entre tradições, crenças, hábitos e costumes sociais, práticas individuais e coletivas, em diversos domínios do conhecimento, que o saber local se renova e novas técnicas surgem, o que se reflete não apenas nos aspetos imateriais da cultura, mas também na transformação do território.

Mas quais são, afinal, as componentes da “identidade local”? Não sendo uma resposta fácil, julgamos, contudo, que se podem resumir a quatro tipo de fatores: biogeográficos (influência do ambiente natural); etno-históricos (sucessão evolutiva expressa na tradição); socioeconómicos (organização económica e social) e ideológicos (enquadramento simbólico e espiritual da cultura), os quais permitem identificar o ponto axial do desenvolvimento – a questão da mudança, no espaço e no tempo, que Milton Santos refere.

Em nossa opinião, e tendo como base os ensinamentos de Milton Santos e na mesma perspetiva humanístico-interpretativa de Trilla (2004), consideramos que a busca da identidade cultural de um local deve centrar-se na procura das relações causais e nas explicações que nos permitam analisar e interpretar os fenómenos observados numa abordagem etnográfica que junte aspetos históricos, geográficos e imateriais.

Em conclusão, este não é um texto de compreensão fácil, mas o facto de conter uma imensa profusão de pistas para uma séria reflexão sobre as implicações da territorialidade de fenómenos como o da solidariedade e o da identidade cultural, tornam-no de leitura obrigatória.

 


Referências bibliográficas:

Afonso, C. A. (1994). O poder do espaço: dominação simbólica, território e identidade nas montanhas de Trás-os-Montes. (tese de doutoramento). Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/1574.

Antunes, M. L. M. (1985). Migrações, mobilidade social e identidade cultural: factos e hipóteses sobre o caso português. Análise Social, XII (65 – 1.º), pp. 17-27.

Carmo, R. M. (2014). Sociologia dos territórios. Teorias, estruturas e deambulações. Lisboa: Editora Mundos Sociais.

Pinheiro, M. (2005). O subúrbio entre o arrabalde antigo e a metrópole: identidade e temporalidade – os territórios do urbano. Ler História. Cidades e espaços urbanos. 48, pp. 11-32.

Santos, H. P. (2017). Portugal: paisagem rural. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Sobral, J. M. (2012). Portugal, Portugueses: uma identidade nacional. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Trilla, J. (Coord) (2004). Animação sociocultural. Teorias, programas e âmbitos. Lisboa: Instituto Piaget.

Vale, M. (2012). Conhecimento, inovação e território. Lisboa: Edições Colibri.


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