Nua, abre
devagar as pálpebras. Embaciados, os seus olhos recuperam, pouco a pouco, a nitidez
e abrem-se espantados ao fixar um piano de cauda. Olha em redor. Está num
coreto, numa cidade desconhecida, com um piano abandonado a seu lado.
De súbito, as teclas
tomam vida movidas por dedos invisíveis. A melodia ecoa no rasto dos sons
metálicos da banda filarmónica, que ali atuara na véspera.
Sem saber o
que fazer, senta-se no chão frio, enfeitiçada pela harmonia das notas musicais que, livremente, dançam no ar. A interpretação
é sublime. Perde a noção do tempo e do espaço.
Sem aviso, a
música termina. Tudo fica quedo. Pressente outros ruídos. Levanta-se e observa
as redondezas. Começa a reconhecer o lugar. O coreto é o de Carnide. Pedacinho
de Lisboa onde mora desde pequena.
A tremer,
Maria João, acorda assustada. Fora apenas um sonho!
Não ouviu o
despertador e sai atarefada para o trabalho num call-center nas Amoreiras. Ao entardecer regressa a casa.
Baixa, de
nariz empertigado, é uma moça jovial. De sorriso fácil, a expressão esmorece
quando, ao entrar no quintal de acesso ao prédio, o gato preto do vizinho se
lhe atravessa no caminho. Mau presságio! Desequilibra-se. Sente o chão a
aproximar-se, mas antes de o tocar alguém a segura.
O olhar dela
prende-se no sorriso daqueles lábios e no negro dos seus olhos. De imediato,
esquece as palavras ásperas que pensara dirigir-lhe. Sente o rosto a
enrubescer. Tenta recompor-se.
Com a chave na
fechadura, olha para trás e através da porta entreaberta do vizinho vê-o: ao
piano do sonho. Ele ainda ali estava e repara no seu olhar, pergunta-lhe se o
quer ouvir ensaiar para o concerto daquela noite no coreto. Ela aceita.
E do sonho
premonitório ao agoirento gato preto, o amor aconteceu!
Sem comentários:
Enviar um comentário