terça-feira, 20 de outubro de 2020

O piano do coreto

Imagem retirada DAQUI.
 

Nua, abre devagar as pálpebras. Embaciados, os seus olhos recuperam, pouco a pouco, a nitidez e abrem-se espantados ao fixar um piano de cauda. Olha em redor. Está num coreto, numa cidade desconhecida, com um piano abandonado a seu lado.

De súbito, as teclas tomam vida movidas por dedos invisíveis. A melodia ecoa no rasto dos sons metálicos da banda filarmónica, que ali atuara na véspera.

Sem saber o que fazer, senta-se no chão frio, enfeitiçada pela harmonia das notas musicais que, livremente, dançam no ar. A interpretação é sublime. Perde a noção do tempo e do espaço.

Sem aviso, a música termina. Tudo fica quedo. Pressente outros ruídos. Levanta-se e observa as redondezas. Começa a reconhecer o lugar. O coreto é o de Carnide. Pedacinho de Lisboa onde mora desde pequena.

A tremer, Maria João, acorda assustada. Fora apenas um sonho!

Não ouviu o despertador e sai atarefada para o trabalho num call-center nas Amoreiras. Ao entardecer regressa a casa.

Baixa, de nariz empertigado, é uma moça jovial. De sorriso fácil, a expressão esmorece quando, ao entrar no quintal de acesso ao prédio, o gato preto do vizinho se lhe atravessa no caminho. Mau presságio! Desequilibra-se. Sente o chão a aproximar-se, mas antes de o tocar alguém a segura.

O olhar dela prende-se no sorriso daqueles lábios e no negro dos seus olhos. De imediato, esquece as palavras ásperas que pensara dirigir-lhe. Sente o rosto a enrubescer. Tenta recompor-se.

Com a chave na fechadura, olha para trás e através da porta entreaberta do vizinho vê-o: ao piano do sonho. Ele ainda ali estava e repara no seu olhar, pergunta-lhe se o quer ouvir ensaiar para o concerto daquela noite no coreto. Ela aceita.

E do sonho premonitório ao agoirento gato preto, o amor aconteceu!


Um texto elaborado em parceria entre Ana Brito e Ermelinda Toscano

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