Hoje
trago-vos aqui as preocupações que Vitalis Luso me fez chegar sobre o Arquivo Municipal de Lisboa.
Um artigo que nos mostra, sobretudo, a irresponsabilidade da autarquia em
matéria de preservação arquivística… Compreendo agora (mas continuo a não
aceitar) parte dos motivos que terão levado ao desprezo mostrado em relação ao acervo
da Biblioteca e do Arquivo da Assembleia Distrital de Lisboa: trata-se, afinal,
do resultado da postura de indiferença de quem é incapaz de valorizar o
património cultural.
«De acordo com o sítio oficial do Arquivo Municipal de Lisboa,
este arquivo é repositório de "documentação que muito tem contribuído para
o conhecimento da história de Lisboa. Desde o século XIV até aos dias de hoje,
muitos são os registos à nossa guarda sob as mais variadas formas: pergaminhos,
livros, revistas, fotografias, vídeos, cartazes, etc., que contam muito da
história da nossa cidade e do nosso país...".
Outra coisa não se esperaria, já que a cidade de Lisboa tem
uma riquíssima história de vários séculos. Mais ainda, porque, como os seus
técnicos não se coíbem de salientar, uma grande parte da documentação é ainda
desconhecida ou pouco conhecida do público em geral, de investigadores,
estudiosos, instituições e demais interessados.
Portanto, as suas valências e potencial é enorme e de grande
valor exploratório no presente e no futuro.
Esperar-se-ia, portanto, que as instalações e equipamentos
deste arquivo fossem um reflexo da importantíssima missão, pela qual é o
responsável institucional: a preservação, catalogação, disponibilização,
análise, estudo e divulgação deste importante acervo para a história e cultura
de Lisboa e de Portugal. Ou seja, seria esperado que fossem exemplo de modernas
soluções tecnológicas, instalações e equipamentos, oferecendo ferramentas para
responder às exigentes solicitações.
Mas não. Nada disso. Incrivelmente, o cenário é o oposto.
Atualmente, a sede deste arquivo encontra-se localizada numas
catacumbas (mal) adaptadas de lojas projetadas num bairro social, com um fim
diametralmente oposto, no bairro da Liberdade, em Campolide, numa zona que
sintomaticamente reflete o abandono a que foram votadas urbanizações, ideias e
projetos urbanísticos. Mais grave, são as condições de funcionamento do
arquivo. Depois de uma fachada exterior por onde se entra, a receção e as
diversas salas de trabalho dispõem-se pelo interior, sem espaço, sem
respiração, sem luz natural, onde se amontoam funcionários e documentação,
disputando cada centímetro quadrado. É facilmente visível a imensa documentação
que se avoluma por corredores e salas, no chão e em amontoados.
A exiguidade do espaço e o volume disputado entre seres
humanos e centenas de quilos de papel envelhecido e sujo, contribui para uma
qualidade do ar seguramente muito longe do ideal, certamente deficiente, e
assustadoramente desconhecida. Até que ponto, ninguém sabe. Ou pelo menos, a
informação não passará para fora de um círculo restrito de chefias e pessoas de
confiança. Num desabafo desalentado, soubemos que há alguns anos ouve uma
inspeção, cujos (aparentes) resultados foram convenientemente distribuídos e
enterrados num relatório de várias dezenas de páginas, com gráficos, quadros,
linguagem técnica e remissões para normas.
Inacreditáveis são também as condições de armazenamento e
acondicionamento da documentação histórica. A propósito de uma visita, fomos
confrontados com o piso histórico do arquivo, instalado nas garagens automóvel
da urbanização. Não é uma figura de estilo, é a verdade. Pudemos ver e manusear
documentos do século XVI, autógrafos únicos e inéditos. Volumes de cartas do
século XVIII. Relatórios, actas, mapas, e conjuntos documentais únicos. Um
tesouro.
Esta documentação, e outros milhares de volumes, está
literalmente depositada em vulgares prateleiras de ferro, de armazém, sem
quaisquer cuidados e proteção contra pó, humidades, fungos, manipulação, etc.
Podia ser um qualquer depósito de armazém. Mas não é. Pese embora o esforço
para minimizar o impacto desta engenhosa mas irresponsável adaptação, nem a
melhor das vontades pode valer algo quando, por exemplo, asseguraram-nos, um
cano de esgoto da urbanização rebenta. Colocados ao longo do tecto do parque de
estacionamento reconvertido em depósito documental, o rebentamento significa o
derrame do seu conteúdo por prateleiras e chão. E ocorre sobre volumes de
documentos. Os danos são irreparáveis. A perda certa. A consequência? Eliminar
da base de dados e deitar para o lixo. Incrível, mas verdade.
Mas tudo isto parece pouco afetar as chefias. A direção do
arquivo, no seu orgulho e colubrejar, conseguiu atravessar mais de 20 anos por
várias vereações e presidências e composições autárquicas sem um beliscão,
seguramente satisfazendo objetivos, e assegurando desejos políticos à custa de
uma estrutura em polvo que implementou.
As condições de trabalho dos funcionários parecem não ter
sido nunca um problema.
E o arquivo tem ainda outras instalações: no bairro do Arco
do Cego, na rua da Palma, no largo de Alcântara, na urbanização do Alto da
Eira, e nos armazéns da Matinha.
No Arco do Cego trata-se de um imóvel num avançado estado de
degradação exterior e interior, sem quaisquer condições, mínimas que fossem,
para albergar, conservar e disponibilizar documentação histórica. Sujeitos a
extremos de calor, frio, ou humidade, os documentos estão acondicionados em
salas exíguas, com parasitas, fungos, ratos, e bactérias. Mesmo da rua, com as
janelas abertas, o cheiro de algumas salas é nauseabundo.
O edifício é apetecível e valioso. Há 7 anos circularam as
primeiras conversas de corredor sobre reconversões, alienação, projetos e
negócios. O certo é que, até hoje, nunca foi objeto de melhoramentos e
investimento, ou sequer dotado dos equipamentos mínimos. A degradação
acentuou-se ao longo dos anos e as suas condições são escandalosamente
deploráveis. É um local sujo, com fortes odores, velho, decrépito, arruinado,
perigoso.
Na rua da Palma funciona o arquivo fotográfico. Inaugurado
nos anos 1990 pelo então presidente da CML, João Soares, foi na altura uma
instalação modelo dotada de condições ímpares para a conservação de negativos,
provas fotográficas e coleções de fotografia nos seus diversos suportes e
formatos. Passados mais de 25 anos, o espaço está ultrapassado, nunca foi
melhorado, e as condições de trabalho degradaram-se de várias formas. À
exiguidade das instalações e sobrelotação de funcionários, à deficiente localização
e distribuição de espaços expositivos, aliaram-se as ocasionais contaminações,
provenientes da falta de circulação de ar, de ambientes sépticos, de produtos
tóxicos. A elevada recorrência de doenças do foro respiratório ou dermatológico
nos funcionários, é sistematicamente desvalorizada e silenciada com periódicas
operações de desparasitação e descontaminação. E como nem sequer se observam os
períodos de reserva de quarentena, por causa dos efeitos toxicológicos, os
constrangimentos são vários, nomeadamente uma surda fobia psicológica.
É um milagre que consiga continuar a oferecer serviços, a
realizar exposições, a desempenhar a sua missão, pois está no limite das suas
capacidades. O edifício, entalado no comércio local, está impossibilitado de se expandir.
Tornou-se deficitário, e a publicitada propaganda de estar "ao nível das
instituições congéneres internacionais" é uma fantasia anedótica.
No largo de Alcântara funciona a chamada Videoteca, cuja
suposta missão será algo de similar às atribuições e competências do arquivo
fotográfico. Contudo, o produto em serviços e materiais e realizações é um
mistério. Como é um mistério que esteja alojado num edifício sob aluguer
vertiginoso de vários milhares de euros mensais, sem que, ao longo dos tais
vinte e tal anos, as chefias se tenham importado em terminar este sugadouro de
verbas, encontrando um local alternativo e definitivo para a sua transferência.
No Alto da Eira funcionaram os serviços centrais e depósitos
do arquivo. É uma história triste. A degradação física das instalações, do
ambiente e circulação de ar, o isolamento do local, aliados a uma evidente
inadaptação das instalações às condições mínimas necessárias para o
funcionamento de um arquivo com múltiplas valências, ditaram os acontecimentos.
Inúmeros problemas de inoperabilidade funcional, de ordem médica, de qualidade
do ar, da luz, do ambiente, e contaminações diversas ao longo dos anos,
provocaram sucessivos casos de doenças de vária ordem, que afetaram os
funcionários: do foro respiratório e epidérmico, de contágios, infeções e doenças prolongadas
com contornos oncológicos.
Depois de muita pressão, de ameaças dos funcionários, e da
eminente exposição pública, as instalações foram encerradas e sujeitas a obras
de requalificação, que ainda decorrem. Ainda assim, e ainda antes do
encerramento, a postura das chefias, com a cumplicidade de elementos
estrategicamente colocados e arregimentados, foi de constante negação, falta de
assertividade e seriedade. Que fatores sujeitos à requalificação foram
contemplados nestas obras, ninguém sabe.
E o saldo não é positivo. Se as ocorrências foram sendo
desvalorizadas e deturpadas, o certo é que foram vários os funcionários
afetados por doenças graves, crónicas e de difícil diagnóstico, incluindo
mortes subtilmente mascaradas sob capas de consternação e solidariedade, o que
escamoteou com algum sucesso o sucedido. E neste campo, ainda muito há para ser
investigado e descoberto...
O arquivo do Alto da Eira transformou-se então numa autêntica
zona proibida, de exclusão, contaminada e de perigo para a saúde pública.
Encerrado ao olhar público, a requalificação teve como consequência imediata a
eliminação do espaço onde deveria, e se pedia, ter tido lugar um inquérito
rigoroso, fidedigno e independente.
Os armazéns da Matinha são "apenas" o lugar de
depósito encontrado para, sob aluguer de instalações particulares, albergar um
vasto conjunto documental que anteriormente se encontrava no Alto da Eira. A
previsão parece ser para terminar este dispendioso ou lucrativo aluguer,
consoante as perspectivas, quando as obras no Alto do Eira estiverem
concluídas.
Em 2016, quando todos os esforços mediáticos da CML apontam
com grande pompa para as grandes obras de qualificação que inundaram a cidade,
a própria CML esqueceu-se de olhar para o seu interior, para a sua riqueza
patrimonial, para as condições de trabalho que devia proporcionar aos seus
funcionários. Para que a oferta de serviços ao cidadão e às instituições, e o
produto do importante trabalho diário interno, fosse mais eficaz e de melhor
qualidade, de acordo com os mínimos padrões e regras de qualidade. Mas, e acima
de tudo, para que as condições de funcionamento do arquivo da capital de
Portugal, detentor de um valioso acervo documental, não fossem
extraordinariamente degradadas ao ponto de colocar em causa a saúde dos
próprios funcionários. Lamentável que tudo isto passe despercebido e ocultado
sob os soundbytes dos milhões das
obras urbanas. Esta é a CML que temos.»
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