quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A propósito do Arquivo Municipal de Lisboa


Hoje trago-vos aqui as preocupações que Vitalis Luso me fez chegar sobre o Arquivo Municipal de Lisboa. Um artigo que nos mostra, sobretudo, a irresponsabilidade da autarquia em matéria de preservação arquivística… Compreendo agora (mas continuo a não aceitar) parte dos motivos que terão levado ao desprezo mostrado em relação ao acervo da Biblioteca e do Arquivo da Assembleia Distrital de Lisboa: trata-se, afinal, do resultado da postura de indiferença de quem é incapaz de valorizar o património cultural.

«De acordo com o sítio oficial do Arquivo Municipal de Lisboa, este arquivo é repositório de "documentação que muito tem contribuído para o conhecimento da história de Lisboa. Desde o século XIV até aos dias de hoje, muitos são os registos à nossa guarda sob as mais variadas formas: pergaminhos, livros, revistas, fotografias, vídeos, cartazes, etc., que contam muito da história da nossa cidade e do nosso país...".
Outra coisa não se esperaria, já que a cidade de Lisboa tem uma riquíssima história de vários séculos. Mais ainda, porque, como os seus técnicos não se coíbem de salientar, uma grande parte da documentação é ainda desconhecida ou pouco conhecida do público em geral, de investigadores, estudiosos, instituições e demais interessados.
Portanto, as suas valências e potencial é enorme e de grande valor exploratório no presente e no futuro.
Esperar-se-ia, portanto, que as instalações e equipamentos deste arquivo fossem um reflexo da importantíssima missão, pela qual é o responsável institucional: a preservação, catalogação, disponibilização, análise, estudo e divulgação deste importante acervo para a história e cultura de Lisboa e de Portugal. Ou seja, seria esperado que fossem exemplo de modernas soluções tecnológicas, instalações e equipamentos, oferecendo ferramentas para responder às exigentes solicitações.
Mas não. Nada disso. Incrivelmente, o cenário é o oposto.
Atualmente, a sede deste arquivo encontra-se localizada numas catacumbas (mal) adaptadas de lojas projetadas num bairro social, com um fim diametralmente oposto, no bairro da Liberdade, em Campolide, numa zona que sintomaticamente reflete o abandono a que foram votadas urbanizações, ideias e projetos urbanísticos. Mais grave, são as condições de funcionamento do arquivo. Depois de uma fachada exterior por onde se entra, a receção e as diversas salas de trabalho dispõem-se pelo interior, sem espaço, sem respiração, sem luz natural, onde se amontoam funcionários e documentação, disputando cada centímetro quadrado. É facilmente visível a imensa documentação que se avoluma por corredores e salas, no chão e em amontoados.
A exiguidade do espaço e o volume disputado entre seres humanos e centenas de quilos de papel envelhecido e sujo, contribui para uma qualidade do ar seguramente muito longe do ideal, certamente deficiente, e assustadoramente desconhecida. Até que ponto, ninguém sabe. Ou pelo menos, a informação não passará para fora de um círculo restrito de chefias e pessoas de confiança. Num desabafo desalentado, soubemos que há alguns anos ouve uma inspeção, cujos (aparentes) resultados foram convenientemente distribuídos e enterrados num relatório de várias dezenas de páginas, com gráficos, quadros, linguagem técnica e remissões para normas.
Inacreditáveis são também as condições de armazenamento e acondicionamento da documentação histórica. A propósito de uma visita, fomos confrontados com o piso histórico do arquivo, instalado nas garagens automóvel da urbanização. Não é uma figura de estilo, é a verdade. Pudemos ver e manusear documentos do século XVI, autógrafos únicos e inéditos. Volumes de cartas do século XVIII. Relatórios, actas, mapas, e conjuntos documentais únicos. Um tesouro.
Esta documentação, e outros milhares de volumes, está literalmente depositada em vulgares prateleiras de ferro, de armazém, sem quaisquer cuidados e proteção contra pó, humidades, fungos, manipulação, etc. Podia ser um qualquer depósito de armazém. Mas não é. Pese embora o esforço para minimizar o impacto desta engenhosa mas irresponsável adaptação, nem a melhor das vontades pode valer algo quando, por exemplo, asseguraram-nos, um cano de esgoto da urbanização rebenta. Colocados ao longo do tecto do parque de estacionamento reconvertido em depósito documental, o rebentamento significa o derrame do seu conteúdo por prateleiras e chão. E ocorre sobre volumes de documentos. Os danos são irreparáveis. A perda certa. A consequência? Eliminar da base de dados e deitar para o lixo. Incrível, mas verdade.
Mas tudo isto parece pouco afetar as chefias. A direção do arquivo, no seu orgulho e colubrejar, conseguiu atravessar mais de 20 anos por várias vereações e presidências e composições autárquicas sem um beliscão, seguramente satisfazendo objetivos, e assegurando desejos políticos à custa de uma estrutura em polvo que implementou.
As condições de trabalho dos funcionários parecem não ter sido nunca um problema.
E o arquivo tem ainda outras instalações: no bairro do Arco do Cego, na rua da Palma, no largo de Alcântara, na urbanização do Alto da Eira, e nos armazéns da Matinha.
No Arco do Cego trata-se de um imóvel num avançado estado de degradação exterior e interior, sem quaisquer condições, mínimas que fossem, para albergar, conservar e disponibilizar documentação histórica. Sujeitos a extremos de calor, frio, ou humidade, os documentos estão acondicionados em salas exíguas, com parasitas, fungos, ratos, e bactérias. Mesmo da rua, com as janelas abertas, o cheiro de algumas salas é nauseabundo.
O edifício é apetecível e valioso. Há 7 anos circularam as primeiras conversas de corredor sobre reconversões, alienação, projetos e negócios. O certo é que, até hoje, nunca foi objeto de melhoramentos e investimento, ou sequer dotado dos equipamentos mínimos. A degradação acentuou-se ao longo dos anos e as suas condições são escandalosamente deploráveis. É um local sujo, com fortes odores, velho, decrépito, arruinado, perigoso.
Na rua da Palma funciona o arquivo fotográfico. Inaugurado nos anos 1990 pelo então presidente da CML, João Soares, foi na altura uma instalação modelo dotada de condições ímpares para a conservação de negativos, provas fotográficas e coleções de fotografia nos seus diversos suportes e formatos. Passados mais de 25 anos, o espaço está ultrapassado, nunca foi melhorado, e as condições de trabalho degradaram-se de várias formas. À exiguidade das instalações e sobrelotação de funcionários, à deficiente localização e distribuição de espaços expositivos, aliaram-se as ocasionais contaminações, provenientes da falta de circulação de ar, de ambientes sépticos, de produtos tóxicos. A elevada recorrência de doenças do foro respiratório ou dermatológico nos funcionários, é sistematicamente desvalorizada e silenciada com periódicas operações de desparasitação e descontaminação. E como nem sequer se observam os períodos de reserva de quarentena, por causa dos efeitos toxicológicos, os constrangimentos são vários, nomeadamente uma surda fobia psicológica.
É um milagre que consiga continuar a oferecer serviços, a realizar exposições, a desempenhar a sua missão, pois está no limite das suas capacidades. O edifício, entalado no comércio local,  está impossibilitado de se expandir. Tornou-se deficitário, e a publicitada propaganda de estar "ao nível das instituições congéneres internacionais" é uma fantasia anedótica.
No largo de Alcântara funciona a chamada Videoteca, cuja suposta missão será algo de similar às atribuições e competências do arquivo fotográfico. Contudo, o produto em serviços e materiais e realizações é um mistério. Como é um mistério que esteja alojado num edifício sob aluguer vertiginoso de vários milhares de euros mensais, sem que, ao longo dos tais vinte e tal anos, as chefias se tenham importado em terminar este sugadouro de verbas, encontrando um local alternativo e definitivo para a sua transferência.
No Alto da Eira funcionaram os serviços centrais e depósitos do arquivo. É uma história triste. A degradação física das instalações, do ambiente e circulação de ar, o isolamento do local, aliados a uma evidente inadaptação das instalações às condições mínimas necessárias para o funcionamento de um arquivo com múltiplas valências, ditaram os acontecimentos. Inúmeros problemas de inoperabilidade funcional, de ordem médica, de qualidade do ar, da luz, do ambiente, e contaminações diversas ao longo dos anos, provocaram sucessivos casos de doenças de vária ordem, que afetaram os funcionários: do foro respiratório e epidérmico,  de contágios, infeções e doenças prolongadas com contornos oncológicos.
Depois de muita pressão, de ameaças dos funcionários, e da eminente exposição pública, as instalações foram encerradas e sujeitas a obras de requalificação, que ainda decorrem. Ainda assim, e ainda antes do encerramento, a postura das chefias, com a cumplicidade de elementos estrategicamente colocados e arregimentados, foi de constante negação, falta de assertividade e seriedade. Que fatores sujeitos à requalificação foram contemplados nestas obras, ninguém sabe.
E o saldo não é positivo. Se as ocorrências foram sendo desvalorizadas e deturpadas, o certo é que foram vários os funcionários afetados por doenças graves, crónicas e de difícil diagnóstico, incluindo mortes subtilmente mascaradas sob capas de consternação e solidariedade, o que escamoteou com algum sucesso o sucedido. E neste campo, ainda muito há para ser investigado e descoberto...
O arquivo do Alto da Eira transformou-se então numa autêntica zona proibida, de exclusão, contaminada e de perigo para a saúde pública. Encerrado ao olhar público, a requalificação teve como consequência imediata a eliminação do espaço onde deveria, e se pedia, ter tido lugar um inquérito rigoroso, fidedigno e independente.
Os armazéns da Matinha são "apenas" o lugar de depósito encontrado para, sob aluguer de instalações particulares, albergar um vasto conjunto documental que anteriormente se encontrava no Alto da Eira. A previsão parece ser para terminar este dispendioso ou lucrativo aluguer, consoante as perspectivas, quando as obras no Alto do Eira estiverem concluídas.

Em 2016, quando todos os esforços mediáticos da CML apontam com grande pompa para as grandes obras de qualificação que inundaram a cidade, a própria CML esqueceu-se de olhar para o seu interior, para a sua riqueza patrimonial, para as condições de trabalho que devia proporcionar aos seus funcionários. Para que a oferta de serviços ao cidadão e às instituições, e o produto do importante trabalho diário interno, fosse mais eficaz e de melhor qualidade, de acordo com os mínimos padrões e regras de qualidade. Mas, e acima de tudo, para que as condições de funcionamento do arquivo da capital de Portugal, detentor de um valioso acervo documental, não fossem extraordinariamente degradadas ao ponto de colocar em causa a saúde dos próprios funcionários. Lamentável que tudo isto passe despercebido e ocultado sob os soundbytes dos milhões das obras urbanas. Esta é a CML que temos.»

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