Ainda a propósito do exercício em simultâneo, no mesmo concelho, do
cargo de funcionário da câmara e deputado municipal, colocou-se a questão do "respeito
hierárquico" e as garantias de isenção.
Para quem exerce funções como trabalhador com vínculo público, o
"respeito hierárquico" é um conceito que integra, nos termos do
artigo 73.º da Lei n.º 35/2014, 20 de junho (lei geral do trabalho em funções
públicas), nomeadamente, os deveres de:
Zelo (que consiste em conhecer e aplicar as normas legais e
regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como
exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e
utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas);
Obediência (que consiste em acatar e cumprir as ordens dos
legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma
legal);
Lealdade (que consiste em desempenhar as funções com subordinação
aos objetivos do órgão ou serviço);
Correção (que consiste em tratar com respeito os utentes dos
órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos).
No caso do deputado municipal, "o chefe do político
eleito" até pode ser, em teoria, o cidadão (sobretudo se se tratar de uma
candidatura não partidária) mas, na prática, tendo o mesmo integrado a lista de
um partido ou coligação, o que acontece é que se não obedecer aos ditames
partidários é convidado a sair dando lugar a outro mais obediente. Se insistir
ficar, a rutura com o partido é definitiva e o autarca deixa de integrar o
grupo municipal de origem ficando como independente. Logo, quem manda nos
autarcas não são os cidadãos, mas os designados “aparelhos do partido” ou os
respetivos líderes das estruturas locais.
Em qualquer dos casos, servidores do Estado (administração
central, regional ou local) ou políticos eleitos nos diversos órgãos autárquicos,
quem manda é a lei pois que a ela todos estão vinculados.
Considerando que os deveres a que um funcionário público deve obedecer
se mantêm mesmo no período pós-laboral, quando esse trabalhador, embora nas
suas horas vagas, está a desempenhar um papel político, existe sempre uma
sobreposição funcional. Assim sendo, coloca-se a seguinte questão:
Conseguirá
um funcionário da câmara e deputado municipal no mesmo concelho obedecer em simultâneo, com igual
isenção, a ambos os “patrões”?
Sendo aquela uma possibilidade legal, por não haver impedimentos na
lei à referida acumulação, sem provas concretas de comportamentos de rutura que
atestem o incumprimento dos deveres como funcionário público e mantendo a
pessoa em causa a confiança política do seu partido, de nada podem os visados ser
acusados, nomeadamente de faltarem aos seus deveres enquanto trabalhadores
autárquicos.
Todavia, criada a situação de suspeição (mesmo que apenas em
teoria), não podem os envolvidos impedir que sobre eles recaia a dúvida sobre a
sua efetiva capacidade de isenção por mais íntegros que sejam. E quem não se
quer sujeitar a estes julgamentos só tem uma solução: optar por não se colocar
nesse tipo de situações. Se escolhe ficar, utilizar a censura como método para
eliminar a livre opinião de quem aborda o assunto é um ato antidemocrático que
acaba por fortalecer a dúvida sobre si em vez de a afastar.
Há uns anos atrás (bastantes), tendo sido sondada para participar
nas listas para a assembleia municipal de um concelho do distrito de Lisboa, como
funcionária de uma entidade supramunicipal dessa região (a qual integrava todos
os presidentes de câmara e assembleias municipais do distrito), considerei que,
mesmo sendo essa acumulação legal, poderiam estar reunidas condições para haver
suspeitas quanto à minha isenção caso fosse eleita. Assim, porque não seria capaz
de aceitar ver a minha idoneidade profissional colocada em causa ou a minha integridade
política sob suspeita, entendi que deveria recusar por considerar haver
incompatibilidade ética no desempenho simultâneo de ambos os cargos.
Por isso, esta é daquelas perguntas a que apenas os próprios
poderão responder já que ela depende dos princípios éticos que defendem. E se optar
por manter ambos os cargos ou escolher apenas um deles é uma decisão individual
que se deve respeitar, em democracia, considerando que o desempenho de cargos
públicos (a nível profissional ou político) é sindicável, impedir que terceiros
façam a avaliação dessas atitudes com o argumento de que são ataques “ad hominem” é uma falácia que apenas
quem se sente inseguro ou tem algo a esconder pode defender.
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