quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Uma pequena história de vida


 

Era já noite cerrada quando Salvador abandonou as instalações da empresa. Cansado, depois de mais de doze horas consecutivas de trabalho, ansiava por chegar a casa e abraçar os filhos que, a esta hora tardia, já deviam estar impacientes com a sua demora.

Tremiam-lhe as mãos, fraquejavam-lhe as pernas. A dor de cabeça, leve embora insidiosa, que o incomodava desde manhã cedo, ameaçava agora transformar-se numa enxaqueca bastante incomodativa.

Enquanto se dirigia ao carro, estacionado no outro lado da rua, arrastando os pés em passos lentos, tropeçou num buraco no passeio, quase foi atropelado por um motociclista em alta velocidade, e só então reparou que deixara a carteira sobre a secretária. Completamente desalentado, encostou-se ao carro e deixou-se deslizar até ao chão, as lágrimas escorrendo-lhe pela face.

Entretanto começou a chover. As gotas de água sobre o rosto deram-lhe alento e num esforço supremo levantou-se, a vista turva, o olhar distante. Encaminhou-se de novo para o escritório e ao pegar na carteira deixou cair uma fotografia.

Ali estava ela, de sorriso aberto, olhos brilhantes, cabeleira loira rebelde emoldurando um rosto oval sardento e de traços delicados. Maria Luísa, a sua companheira de uma vida e mãe dos gémeos Lourenço e Gonçalo que nos seus inocentes quatro anos ainda esperavam por ela todos os dias entre birras e choros, numa espera desesperante que tanta dor lhe causava observar.

Porquê? Porquê, meu Deus! Porque a levaste tão cedo?

De súbito ouviram-se gargalhadas ecoando pela sala vazia. Um riso duplo entrecortado por gritos de criança que o fizeram despertar para a realidade. Era o toque do telemóvel: sim mãe, estou a ir para casa! Sim mãe, eu sei que já é tarde! Diz-lhes que o pai já não demora.

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